Na cozinha dos meus avós, lá no início do outro século, na época da cozinha de Manhufe, não era assim, tudo era mais integrado, mais consequente, cada coisa tinha o seu lugar, com a genealogia gastronónima bem definida e desenhada.
A cozinha cheirava a broa, a nabo, a rojões, a feijão, a mão de vaca, a enguias, a castanhas, a gila, a leite creme, a aletria com canela, … amassava-se o pão, deixava-se a levedar, fabricavam-se queijos de cabra e ovelha, a marmelada punha-se à janela e os figos também, benziam-se e responsavam-se os cozinhados mais complicados, e a cozinheira chamava-se Felisbela.
Os odores combinavam com os potes, com o trasfogueiro, com a salgadeira, com as queijeiras que transpiravam soro, com a masseira, com a rapança, com as filas de fumeiro, com o púcaro de alumínio, com a água fresca de sabor inigualável.
Havia feixes de luz, que definiam divisões geométricas imaginárias que pairavam no ar perfumado. O sol era filtrado entre as telhas, iluminando as poeiras suspensas, através de projecções cónicas, criando velaturas de transparências, ora acentuando arestas, ora diluindo formas, que me transportavam para mundos imaginários, sem tempo, sonorizados com giroflés, giroflás, num caldo de emoções infantis impossíveis de repetir… é isto que consigo descodificar na cozinha de Manhufe, e por em paralelo com a minha experiência vivencial.
Havia feixes de luz, que definiam divisões geométricas imaginárias que pairavam no ar perfumado. O sol era filtrado entre as telhas, iluminando as poeiras suspensas, através de projecções cónicas, criando velaturas de transparências, ora acentuando arestas, ora diluindo formas, que me transportavam para mundos imaginários, sem tempo, sonorizados com giroflés, giroflás, num caldo de emoções infantis impossíveis de repetir… é isto que consigo descodificar na cozinha de Manhufe, e por em paralelo com a minha experiência vivencial.
A geometrização das formas da cozinha, foi construída pelo meu olhar entre os feixes de luz, enquanto brincava de amassar o pão, esticando a massa, desenhando sobre ela, peneirando farinha, cheirando fermento e comendo às escondidas massa crua. Neste cenário, desenvolvi utopias, rompendo propositadamente essa luz coada por telhados cerâmicos, agitando e deformando as partículas, nascendo a vontade de experimentar prismas de luz, efeitos de cor, através de copos facetados, que na minha mão tiveram outras utilidades para além de pura e simplesmente beber. (cont)
3 comentários:
A infância, o seu fascínio e encanto, nunca esquece as mensagens visuais, sonoras e odoríferas que as cozinhas provocam e transmitem. Porque será? Confesso que não sei. Só sei que são reais, vividas, sentidas e inesquecíveis.
Que deslumbramento eu tenho por cozinhas!
Incluo-me nessa lista de crianças que ocuparam esse espaço. E, incluo-me porque comportam mistérios, contam estórias, têm sempre gente fantástica que nos abraçam, nos comovem e vivem em nós.
Conta-me mais!
Onde é Manhufe?
Quem era a Felisbela?
Conta-me mais sobre o que encerra a magia deste lugar?
O encanto e a ternura de uma avó, de uma cozinheira, do fumo, do quentinho, da ingenuidade e da sua pureza vividas. Sim! Nas cozinhas!
Também tenho estórias sobre a cozinha da minha infância que perdura em mim. Talvez, por isso acontecer comigo, leio-te com um interesse e atenção a cada narrativa que fazes sobre elas,sobre as cozinhas!
Não termines aqui. Conta mais e, esclarece-me.
Deposito paixão pela forma como tu o fazes. Não te escapa um pormenor. Magistral!
Beijos.
Agora percebo, cada vez mais, porque gosto de passear por aqui
Estou de acordo convosco. Também gosto de permanecer na cozinha. Ana tens uma imaginação brilhante.
Mª João
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