25 dezembro, 2014

07 dezembro, 2014

Parada na linha do tempo

 

Fotografia: Manuel Cosentino.
Eras tu, sem seres, parada e demente na linha do tempo. Sem orientação, sem rumo, parada sem bagagem no apeadeiro da vida, dando-nos a grande lição da vida, a aguardar pacientemente a morte anunciada.
Fomos-te perdendo, anos antes, em cada olhar que se despedia de nós, como uma paisagem que se some no horizonte. Fingíamos não perceber e fazíamos contigo, planos para o futuro, sabendo que o futuro já tinha ficada para trás há muito. Não tínhamos lágrimas, apenas surpresa e ansiedade por aquilo que ainda te estaria reservado, apelando todos os dias para a nossa força interior, que muitas vezes claudicava vertiginosamente. O desespero de não se perceber a demência. O desespero de não termos armas para lutar por ti. O desespero de em cada noite te tornares ainda mais distante e desconhecida de nós.

 O entusiasmo, a lucidez, a autonomia e a perseverança que te caracterizavam, abandonaram-te tão cedo, que as manhãs poderiam ser tardes, e as tardes, as noites, como se a linha do tempo se tivesse subitamente tornado quebrada, por determinação de ninguém.

 Eras tu, sem seres, apaticamente estacionada no tempo, e nós, plateia forçada dessa despedida dolorosamente injusta.

 Bj mãe


21 novembro, 2014

O defunto falecido


O defunto falecido      

            Há histórias que originam verdadeiros filmes, pois são invulgares e com conteúdo forte, tornando-se bizarras quando analisadas com sentido crítico. No Portugal profundo não há só as histórias populares da tradição oral, também há outras histórias que possuem a dualidade do real e da fantasia, capazes de dar algum contentamento a um realizador neorrealista.

 

            Conheci uma figura impar, já desaparecida, que assinou como autor de algumas histórias bizarras, e que, contadas e recontadas na 1ª pessoa, lhe pertencem do princípio ao fim. Com personalidade aventureira, habituado às adversidades da vida, capaz de imensas proezas inimagináveis, sem os valores bem aferidos, disposto a correr riscos e com uma linguagem pejada de asneiras cabeludas constantes... ele contou que, num momento da sua vida, entre diversas profissões ocasionais que desempenhou, fazia com um automóvel citroen “boca de sapo” com 4 vitesses para a frente, viagens entre Portugal e França, servindo especialmente os emigrantes portugueses, transportando-os ou realizando serviços legais e ou ilegais, dependendo do ponto de vista e do preço. Não era zarolho, mas corria riscos na mesma, sem grande responsabilidade e sem medir as consequências para ele e muito menos para os outros. Penso que a ilegalidade era o fato que lhe assentava melhor.

            Um belo dia deparou-se com o desafio de transportar ilegalmente um defunto falecido numa bidonville parisiense para Portugal, já que os familiares não teriam dinheiro para a trasladação legal ou nem saberiam como faze-lo. O transporte de um falecido envolve responsabilidade médica e jurídica, um processo burocrático enorme, e ter a bolsa recheada de dinheiro para fazer face às despesas. Os familiares tinham poucos recursos, apesar do carro em 2ª ou 3ª mão guardado para vir de férias au Portugal.

            Ele dispôs-se a faze-lo sem grandes complicações, recebendo logo à partida a remuneração combinada para lhe dar ânimo para a viagem. Recolheram alguns francos pelos diversos filhos, e apostaram as “fichas” todas nesta solução.

            Recolheu o defunto que tinha falecido há menos de uma hora, vestiu-lhe um fato preto, sentou-o e amarrou-o ao banco do passageiro do carro dele (ainda não havia cintos de segurança), apertou-lhe o casaco, colocou-lhe un chapeau e a gravata e rematou com uns vérres bem escuros. Arrancou para Portugal, um Portugal que ainda não era Europa, com a garrafa de bagaço no porta-luvas e os cigarros 3 vintes no bolso da camisa. A família seguia noutra viatura, à derrière..

            O defunto falecido portou-se muito bem, parecendo dormir o caminho todo. Pararam para dormir um pouco. Pararam para fazer as refeições – o farnel do arroz de frango e umas sandes de fromage. O defunto não teve fome, manteve-se sereno, abstémio e sempre com os seus óculos escuros, que ora lhe filtravam o sol, ora lhe filtravam o luar…parecendo dormitar. O queixo descaia um pouco e foi preciso reforçar o visual com um cachecol. Numa das fronteiras, os carabineiros, rodearam o carro, espreitaram, pediram documentos, interrogaram e respeitaram o sono do senhor adormecido. A família em pânico dentro da sua viatura, visualizando todas estas operações, rezavam pai nossos e avé marias à Nossa Senhora de Fátima, para que o defunto não fosse convidado a sair….

            O motorista aventureiro quando recontava a história dizia que o pior estava para vir.

            Entraram au Portugal com sucesso e chegaram à aldeia lá para os lados de Montezinho, onde a urna e a cova no cemitério já estariam abertas e toda a papelada tratada, pois previa-se o odor insuportável do final da viagem. De facto o pior estaria para vir, e que seria retirar o defunto do veículo que o acolhera ainda quente e por mais de 30 horas de viagem.

            O post mortem, a viagem, as fronteiras e o fumo do permanente cigarro 3 vintes do autor desta proeza, endureceram-lhe os músculos, os tendões, o comportamento e até a alma. O homem era grande, vinha bem encaixado entre a cadeira e o tablier, teso como um presunto, sem maleabilidade alguma para se retirar do veículo.

            - Então Galdra? como resolveste le problèm?

            - Ca, ca ....lho. (ele era gago) titive que que lhe partir as pernas! Q’até deu jeito para o meterem na urna, senão ela não fechava com as pernas dobradas.

            No final todos os ouvintes riam por imaginar o Gualdra com um martelo a fazer o desencarceramento do defunto dorminhoco.

            - Olha lá e se os Carabineros tivessem percebido e mandassem sair o senhor do chapéu?.

            -Ca, cara .... lho eu já estava a penpensar, pupu..a que pariu eu eu fingia que quia buscar os dodocumentos ao cacarro queque  nos seguia e fugia que nunnunca mais ninguém meme apanhava!.

            Pobres dos familiares, que pagaram bem e seguiram confiantes este aventureiro, que nem pensaria duas vezes em deixa-los a todos em maus lençóis.

            Um cromo esta figura!

            Digam lá se não dava um filme????!!!!!

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In” Estórias de um Portugal profundo” Anabela Quelhas

21 outubro, 2014

premio empreendouro 2014


Posso finalmente divulagar os meus cartazes candidatos ao concurso empreendedouro 14.

Não fui selecionada e garanto que os trabalhos selecionados não foram os melhores. De facto o gosto é discutível, é bom discutir o gosto, e o gosto dos júris ~´e muito discutível.

Foram seleccionados cartazes que resultam apenas de um bom programa de fotografia que faça tratamento artístico, forma selecionados cartazes com uma composição gráfica pouco estética… enfim. Dá vontade de não participar mais, nem motivar que outros participem acreditando que a qualidade vencerá..

Não sinto dor de derrotada, pois ando nisto há muitos anos, e o meu entusiasmo por um projecto deste género, basta. O que me motiva verdadeira mente é  ter oportunidade para ser construtora é isso que me premeia como pessoa e artista- Tenho pena que não exibam on line todas os cartazes candidatos para que o publico tenha oportunidade de constatar a avaliação que foi realizada. Exibem apenas 10 cartazes escolhidos para se votar on line.
Ver projectos categoria 5
http://premio.empreendouro.pt/Pages/Projetos.aspxrojectos categoria 5

 
OS MEUS CARTAZES 

 

MEMÓRIA DESCRITIVA

TÍTULO: O futuro é d’ouro

A proposta apresentada foi criada essencialmente através do recurso fotográfico.

A junção da imagem de uma menina de sorriso meigo e doce (como o porto branco), a um pormenor arquitectónico, desenhado por Nicolau Nasoni, tem a intenção de colocar em diálogo, o antigo e o contemporâneo.

Nicolau Nasoni, arquitecto italiano da época barroca, que deixou imensas marcas neste vasto território do Douro, continua a ser uma potencialidade cultural desta região, no presente e no futuro.

As geometrias do barroco, expressas na arquitectura religiosa e na arquitectura civil, evocam as linhas dos socalcos, as progressões do crescimento dos braços da planta trepadeira que é a parreira, e as gavinhas que assumem a parte mais delicada e eficaz do crescimento da mesma. As linhas onduladas dos cabelos da menina e toda a expressão sorridente e concordante das linhas curvas do seu rosto, representam as gerações vindouras que continuarão a valorizar esta região e a preservar a linha de água que é de ouro tal como o seu futuro. Toda a região do Douro tem uma geometria rebuscada gémea do barroco, relaxante, sorridente que a converte única e inesquecível.

As gentes, o património cultural e o vinho são o ouro desta região – a consolidação no presente e a esperança no futuro.

Motivação – Expressar artisticamente algo que é único no mundo, o Douro. O Douro  não seria o mesmo Douro, sem o seu património construído, barroco, muito articulado com o grande arquitecto Nicolau Nasoni. O barroco confere a toda a região distinção e erudição., convertendo-se numa valia adicional ao vinho do Douro.

Identificação de lugares - O pormenor apresentado foi recolhido na fachada principal da capela localizada no solar de Mateus em Vila Real e abre-nos caminhos para além do vinho, direccionados para diversas vertentes do património cultural comum a toda a região.

 

MEMÓRIA DESCRITIVA

TÍTULO: Douro – é aqui

                Apresenta-se proposta globalizante do que é o Douro.

                A listagem dos concelhos cria um bloco único de cumplicidade e labor, criando o equilíbrio com as linhas das vertentes, traçadas como gesto duplo desenhado de uma só vez, como se o Homem tivesse o poder de rasgar o espaço e impor-se sobre a natureza.

O Homem teve e tem esse poder.

“Deus desenhou as montanhas através de um rio de ouro e o homem teve a inteligência e o empenho de as “socalcar” com muros de suporte em xisto e enxada para obter o melhor vinho do mundo.” Esta frase escrita pela autora reforça a imagem e surge assumidamente na composição gráfica. Todo o cartaz é sóbrio para que o cacho de uvas, desenhado no espaço de maior visibilidade, se expresse em todo o seu esplendor.

Motivação – Responder a um desafio para promover o Douro, evocando Deus de forma simbólica como o grande arquitecto de toda a região, já que a paisagem é divinal e única no mundo.

Identificação de lugares – Todos os conselhos.
 
 
 

MEMÓRIA DESCRITIVA

TÍTULO: Douro - A linha que une

            A proposta apresentada evidência de forma minimalista e contemporânea o relevo das margens do rio Douro e o elemento que as une, numa linha ziguezagueante, única no mundo, expressando o encontro feliz dos três elementos.

            A riqueza paisagista, enriquecida pelos socalcos criados e recriados pelo suor do homem do Douro, oferece-nos diversos planos, que vão escondendo o rio e vão cultivando o nosso imaginário, recortado de uvas e sabores generosos, que contribuem para o desenvolvimento dos lugares, dos sítios, dos pequenos aglomerados habitacionais, sintetizados nos diversos concelhos, que dão consistência à tal linha que une, o rio Douro.

            O impacto deste cartaz constrói-se a partir da junção de uma moderna simplicidade da linha – a definição do relevo apenas com linhas coloridas distintas, porque cada encosta é única – com a complexidade e   força da escrita, transformada em textura líquida simbolizando a dependência dos lugares em relação à linha de água e ao micro clima que permite o cultivo deste vinho único no mundo.

             A cor que domina o cartaz associa-se à cor do vinho, induzindo de imediato a potencialidade global desta região. É também uma cor quente que tenta captar a parte psicológica do receptor conferindo sensações de conforto, bem-estar, bom acolhimento e relaxamento que toda esta região pode proporcionar aos seus visitantes.

Motivação – Juntar a criatividade  minimalista ao Douro, convertendo os concelhos e as sua gentes, nos grandes agentes dinamizadores desta região.

Identificação de lugares – Todos os concelhos
 

18 setembro, 2014

Portugal está um país feio


Portugal está um país feio

                Uma circunstância infeliz da minha vida forçou-me, a passar estas férias circunscritas ao local onde vivo. Passei pelos mesmos sítios de sempre, repeti fotos, descobri novas realidades que por vezes se apresentam invisíveis, estendi olhares sem pressa, associados a reflexões outras vezes construídas, ou seja aproveitei a imobilidade de forma criativa e como sempre obedecendo ao meu espirito critico.

                O gosto educa-se? Aquela questão com que muitas vezes trunfamos para justificar erros e alarvidades visuais, voltou a emergir na minha cabeça, onde as questões estão armazenadas em abundância.

                Portugal está um país feio. MESMO FEIO! Acho eu e os outros.

                Esta é uma verdade incontornável.

                A arquitectura que invade o nosso horizonte, seja em que sítio for, é de péssimo gosto.

                Os amantes da fotografia devem sempre ter o cuidado de confirmar os enquadramentos, para eliminar ou esconder o que está a mais, os erros arquitectónicos e as aberrações que nascem no meio da arquitectura popular.

                A desordem urbanística é uma verdadeira anedota.

                Quem são os responsáveis? Os arquitectos e os engenheiros? Não.

                Os proprietários? Seria fácil dizer que sim, confirmar a sua culpa já que são eles os agentes activos. Mas não são. Os proprietários só constroem o que lhes deixam construir.

                Os grandes culpados são os autarcas deste país. Demoraram anos e anos para criar e aprovar PDMs e entretanto iam aprovando atrocidades, dentro e especialmente fora das cidades. Todos os autarcas deveriam ter uma política de organização do território e aplica-la com rigor. Já sabemos que a maior parte dos autarcas não tem formação nessa área, mas têm equipas e técnicos dentro das câmaras municipais. Tiveram inclusivamente gabinetes de apoio técnico, os GATs que não foram rentabilizados como deveriam ser, os técnicos estavam lá. Seria difícil seguir o princípio da não invasão dos solos agrícolas com construção?

                Cada um fez a sua casa onde quis. As redes de abastecimento de água são redes irracionais, dispersas, em que todos nós pagamos ao metro linear. Criar redes de esgotos para esta maluqueira urbanística é uma utopia e assim cada construção tem uma fossa que vaza os detritos para os terrenos adjacentes.

                Os autarcas assobiaram para o lado, durante 40 anos, têm fechado os olhos à sua própria incompetência. Foram 40 anos de asneiras sucessivas, somadas e multiplicadas, com ou sem PDMs.

                E a arquitectura?

                Quem domina o território são projetos de engenheiros sem qualquer formação estética. Aquela afirmação, “Gostos não se discutem”, tem servido para viabilizar a construção de edificações sem serem concebidas pelos profissionais que têm esse saber e direito. Esta situação que se chama falta de ética profissional, foi alastrando sobre a forma de vírus pelas cidades, aldeias e a natureza que as rodeiam. Hoje temos um Portugal feio, muito feio. As aldeias estão descaracterizadas, os solos agrícolas e as veigas entre montanhas estão pulverizadas por construções que assumem o mau gosto dos proprietários, dos seus autores e dos seus autarcas. Qual integração? Qual valor patrimonial? Qual valor arquitectónico? Existe por vezes um excesso de rigor nas cidades e uma permissividade catastrófica nos aglomerados rurais que definitivamente comprometem a paisagem deste país. As construções novas surgem desintegradas da paisagem e também não valem por si, porque arquitectonicamente são umas nódoas.

                Costumo dizer que, daqui a uns milénios, quando as gerações futuras ou então os ETs que desaguem por aqui, avaliarem o Homem actual deste país chamado Portugal, deduzirão que temos diversas neuropatias, entre as quais aquela que impede o Homem de se expressar arquitectonicamente com uma linguagem própria do seu tempo, e assertiva com todas as outras formas de arte suas contemporâneas.

                Os meus caros e amigos engenheiros que me desculpem, mas projectam com um papel milimétrico dentro da cabeça, sem qualquer sensibilidade ao espaço, à volumetria, à composição, à envolvente, à história e aos utentes. Projectam à engenheiro como é o seu dever. Para eles, linguagem arquitectónica ou fruição estética são verdadeiros palavrões. Temos que reconhecer que todos nós saberemos desenhar uma casa, só que uns fazem-no melhor do que os outros.

                O resultado é este, é tudo aquilo que invadiu a paisagem portuguesa e nos faz entristecer. Projectar bem é conciliar de forma criativa, a forma com a função, assumindo com dignidade e orgulho a linguagem arquitectónica de cada tempo. As construções fazem-se grandes e caras. Alguns proprietários fazem questão de dar visibilidade à ostentação e ao seu poder económico, e estão no seu direito, mas fazem-no tão mal! recorrem a técnicos, não a arquitectos. Surge por vezes um maior cuidado em certos projectos, que infelizmente se resume a umas molduras de granito, em cópias mal feitas do tempo de Raul Lino. Estamos no século XXI, temos tecnologia do século XXI, aplicada em projectos do século XIX - uma neuropatia de 2 séculos.

                De quem é a culpa?

                Dos autarcas. Desculpem eu insistir na acusação. Por vezes basta um conselho, basta mostrar novas tipologias, basta até criar regulamentos municipais com indicações claras sobre as intervenções, basta seguir as orientações de um arquitecto e basta não misturar poder autárquico com lobbies, com especulação, com tráfico de influências… é também da competência dos autarcas a educação estética dos munícipes, e o exemplo tem que vir de cima, obviamente.

                Houve uma época, e não foi há muito, que as autarquias dispensavam o cargo de arquitecto no seu quadro de técnicos, pois normalmente colavam-lhe o rótulo de artista louco, incómodo e “pouco prático”, e quando o tinham, colocavam-no na “prateleira” destinando-lhe a toponímia das ruas da urbe, impossibilitando que opinasse na definição de linhas estratégicas de desenvolvimento. A única vez que me candidatei a um concurso para vaga de arquitecto numa câmara municipal, fui rejeitada por não ter telhados de vidro, ser interveniente, eventualmente não ser permeável a partidarites e por ser mulher. Já foi depois de Abril!

                Estamos a pagar uma factura elevada desta falta de visão, desta inoperância e inércia autárquica global que afecta a todos. Cumprir regulamentos não chega, mas nunca é tarde para mudar, apesar que praticámos erros incorrigiveis… pelo menos agrada-me que peçam desculpa pela perturbação que as obras municipais causam aos munícipes. A educação é sempre positiva e de sublinhar.   

In” Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado”

Anabela Quelhas (aprendente e anotadora de espaços)

Sem acordo ortográfico
Publicado em NVR set 2014

14 junho, 2014

Zaha Hadid

ENCONTRO IMEDIATO DE 3º GRAU
Zaha Hadid
Londres
Serpentine
 



 
Reencontro com outro mito

24 abril, 2014

Afinal onde é o meu lugar

Afinal onde é o meu lugar? 
            Por onde andava eu há 40 anos atrás???
            O dia 25 de abril de 74 apanhou-me a sair da adolescência, numa idade em que já era uma observadora atenta do que me rodeava, sensível aos ideais ligados à igualdade e à fraternidade multicoloridas, conscientemente contra o “orgulhosamente sós” de Salazar, mas ainda saudavelmente ingénua e cheia de sonhos.
            Como estava no hemisfério sul, só tive conhecimento da revolução no final do dia seguinte, muito em segredo antes do jantar, deixando-me de orelhas em pé, pois a referência segredada foi segredada entre adultos apenas. Pareceu-me nascer ali um entusiasmo cauteloso, que me fez ansiar pelos jornais do dia seguinte, para finalmente ver Spínola como grande herói, com fotografias de página inteira, remetendo Otelo para segundo plano e Salgueiro Maia para terceiríssimo e desvalorizado plano. Nessa altura não me apercebi disso, logicamente. Incomodava-me aquele monóculo e o pingalim que segurava na mão, desconfiando da personagem, que tais objectos transportava, parecendo-me mais um tirano do seculo XIX, do que um revolucionário do século XX. Aquele monóculo nada tinha de modernidade. O modelo era Che.  
           
Nos dias que se seguiram, o monóculo virou moda e era simulado de forma irreverente por caricas de coca-cola, para posarmos nas fotografias de grupos de amigos adolescentes, crentes num futuro risonho e livre. O poster de Che Guevara colado nas paredes dos quartos, os discos clandestinos de Zeca Afonso, a ideia de um líder chamado Agostinho Neto, deixou de ser utopia e passou a ser tema de conversa constante, num processo de descoberta e aprendizagem rápida da democracia e da liberdade. Eu vivia com o BO (bairro operário) mesmo ao lado, suscitando muita conversa clandestina que o meu espirito curioso retinha, nos anos de adolescente. Contavam-se histórias… o cartão de visita da miscigenação urbana não colhia no meu lado, impulsionando diversas questões que eu ia organizando na cabeça, e que todos omitiam os esclarecimentos de que era ávida.
            Nada mais foi igual, a sociedade de Luanda entrou em sobressalto progressivo. A ideia doce e romântica de uma independência desejada e de um salto de liberdade para um futuro de todos, rapidamente se transformou numa contagem decrescente para a guerra civil, que tal como todas as guerras são injustas, sangrentas, desumanas, mutiladoras e trágicas. A descolonização rápida, necessária, mas pouco eficiente e nada assertiva, gerou meio milhão de retornados e refugiados, seres humanos desprotegidos, incapazes de se organizar e lutar pela sua permanência nos territórios independentes, que apenas tiveram como alternativa, a saída.
            Percebi, com 16 anos, que não tinha autonomia para tomar decisões sobre a minha vida e para a minha vida. Descobri que devia obedecer às decisões dos meus pais, mesmo que me desagradassem profundamente. Constatei que não era suficientemente crescida para viver sozinha na terra que me viu nascer, nem era suficientemente criança, para tudo me passar ao lado.
            Após poucos meses do 25 de abril, anunciaram-me que tinha duas horas para me despedir de Luanda, pois provavelmente iria ter um bilhete de ida para Lisboa, sem volta. Já passava das 18h30m.
            Não fui ouvida, nem achada!
            Trinta minutos foram para comprar dois agasalhos, um casaco de lã azul e uma camisola roxa, que por mero acaso e sorte havia numa loja junto ao local onde vivia. O resto foi a despedida. Despedi-me de lágrimas nos olhos, e vários nós na garganta, de uma cidade linda. Ao longo desse tempo, revi alguns momentos das minhas vivências frágeis e ingénuas, que farão eternamente parte de mim, retive no olhar sítios da minha terra de nascimento e de coração. Faltou-me o tempo para me despedir de amigos, para anotar contactos, para criar novas pontes de ligação para o futuro. Nem queria acreditar que não voltaria, que poderia nunca mais ver e estar com os meus amigos. Algo desconfortável e cada vez mais aterrador se instalou na minha racionalidade, tornando-me incapaz de tudo, excepto obedecer.
            Naquela noite, cresci de repente vários anos. Passei a ser adulta da noite para o dia seguinte, lutando entre duas lógicas, a minha lógica dos afectos e a lógica da descolonização, indiscutivelmente necessária, quanto a mim. Eu já entendia a democracia como meta maior, já tinha observado a digestão difícil de várias revoltas e era sensível ao conflito implícito da acção colonizadora.
            As luzes reflectidas na água negra da baía de Luanda, assumiram formas irregulares e esborratadas, resultantes da luz e das minhas lágrimas silenciosas, que teimavam correr-me pela face enquanto viajava no banco de trás do automóvel do meu pai em direcção ao aeroporto. Conferi cada rua, cada avenida, cada cruzamento… olhei pela última vez os sítios onde me encontrava com os meus amigos.
            No dia seguinte, passei a ser refugiada em terra europeia. A coincidência entre duas realidades: a minha realidade geográfica intersectada com a minha realidade afectiva, temperada pela revolta da não decisão. Entrei num mundo sem fortes referências para mim, onde decorria uma revolução com alguns contratempos pelo meio - eu, cheia de contradições e com novas e maiores responsabilidades, um pouco entregue a mim mesma. O rótulo de retornada e não progressista também se colou a mim em algumas situações menos felizes na integração na sociedade portuguesa. A desconfiança sobre a minha caderneta escolar que testemunhava bons resultados académicos, a desconfiança sobre os meus princípios e valores, a falta de solidariedade entre colegas de escola, e a ausência de camaradagem extra escola, premiaram-me em diversos momentos ao longo de 74/75, nas terras “do choupal até à lapa”.
            A ruptura violenta e traumática nos meus afectos, converteu-me em jovem adulta silenciosa, precoce e introvertida, com as sensibilidades adormecidas, ou talvez anestesiadas, como forma de me proteger das novas realidades. A racionalidade e as emoções, combateram-se num duelo entre uma aprendizagem ideológica e as orientações do politicamente correcto, potencializada através da pintura realizada em horas de ócio no Museu Machado de Castro, ao longo de alguns meses. 
            Alguns amigos foram reencontrados quase 30 anos depois, outros permanecerão sempre no fio da navalha, entre o estar ou não estar vivos.          Quem me desenhou o destino era graficamente inábil como tenho confirmado ao longo da vida.
            Costumo dizer que a minha vida afectiva é um puzzle incompleto, onde faltam algumas peças. Das peças recuperadas, nem todas me trouxeram alegria, pois os anos passaram, e as peças tornaram-se menos luminosas, com contornos desligados da minha história e por vezes contrários às minhas convicções.
            Os anos passaram, não voltei mais.
            Passei a ser assumidamente uma sem terra, ou contrariando e ampliando até ao absurdo, também poderei dizer que passei a ser uma cidadã do mundo, o que em termos práticos dá no mesmo. A lei diz que tenho nacionalidade portuguesa, o meu BI também, e eu continuo a sentir-me sem raízes nos vários locais onde já vivi, neste país. Vivo de sensações armazenadas, entre sombras de jacarandás e aromas de acácias rubras, desconfiguradas em terra fria de bravos navegadores da cauda da europa e uma vontade férrea de inovar com vistas para o futuro.
            Sou portuguesa sem ter nascido aqui e não sou angolana porque não vivo lá. Afinal sou de onde? Um paradoxo desta coisa de se ser eternamente de algum lugar, sem efectivamente o ser, mas que nos preenche os sonhos de todas as noites - a crise de identidade que muitos angolanos sentem e vivem, provavelmente entenderá o verdadeiro e profundo significado destas palavras rabiscadas a partir do 25 de abril de 74.
Afinal onde é o meu lugar? 
In” Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado”
Anabela Quelhas (aprendente e anotadora de espaços)

(sem acordo ortográfico)

19 março, 2014

Nunca me imaginei sem ele

Nunca me imaginei sem ele*
Nunca me imaginei sem ele.
Foi personagem essencial de muitas fotografias minhas, as primeiras que me tiraram quando decidi nascer, que ainda conservo num velho álbum de folhas de cartolina negra. Fotografias minúsculas recortadas com perímetro ziguezagueante, coladas com cantinhos vermelhos, em que ele me pega ao colo, fazendo-me parecer mais crescida, do que efectivamente era. Com dois meses parecia que tinha quatro ou cinco. Com chupeta, sem chupeta, de repas ruivas ao vento, fazendo caretas …. Sempre a preto e branco, não para fazer estilo, mas por incapacidade da máquina fotográfica daquela época…. Sempre ao colo do sr. Quelhas , o meu querido pai.
Gostava da voz dele, apreciava a sua agilidade, era um homem bonito e culto, era um lutador, era sensível, era teimoso e resistente,  a fragilidade era a sua força para criar soluções para ultrapassar barreiras. Chorava quando ria, exactamente como eu. Usava mais os óculos na cabeça do que no nariz, exactamente como eu faço. Não gostava de compromissos assumidos a longo prazo, porque mudava de ideias…gostava de decidir na hora, olhem eu!
A genética não falha nem mente, para o bem e para o mal.
Acho que foi o melhor pai do mundo, mas provavelmente teria os defeitos que todos têm. Os meus olhos já mais maduros de filha caçula, protegida e mimada, continuam a vê-lo como o melhor.
Quando estava contente trabalhava assobiando. Assobiava muitas vezes a banda sonora do filme ”A ponte do rio kwai”. E cantava bem, muito bem, como tenor.
Sempre o respeitei e sempre o admirei. Pus em causa muitas certezas que ele tinha, mas foi a minha maior referência, quando era criança, quando cresci, quando já pensava que era alguém sem o ser, e depois de ele faltar.
Raramente me deu brinquedos, mas deu-me 2 dicionários Lello Universal quase tão pesados como eu (na época), cujas páginas separadoras coloridas, coloriram muitas horas da minha infância - os serões monótonos do inverno. as horas desocupadas depois da escola, os fins de semana vazios de obrigações…
Deu-me uma bússula, uma clarineta Honner e um catálogo de cores das tintas Cin….
Não riam, pois eu gostei!
Não me contou histórias de princesas e bruxas más…
Contou-me histórias sobre Humberto Delegado, contou-me histórias de mineiros e de explorações de volframite, contou-me histórias sobre as constelações, contou-me histórias sobre Hitler e a resistência francesa, contou-me histórias sobre escravos e sobre heróis como Galileu e Nuno Álvares Pereira, contou-me histórias de viagens… histórias vividas e recontadas na 1ª pessoa.
Também gostava de rir, apresentou-me Cantinflas, Charlot, Sordi, Fernandel e Louis de Funés.
Foi ele que me levou a primeira vez, a um observatório do espaço, a um zoológico, a um porto de mar, a um autódromo, a um teatro, a uma catedral, a uma mina de água, a um museu, a uma fábrica, a uma fortaleza, a um pântano com jacarés…
Não riam, porque eu adorei! Aprendi até a subir a um edifício pelo lado de fora, com andaimes obviamente.
Mostrou-me casas, muitas casas…
Leu-me jornais, a tira do Ruca, partes dos Lusíadas e leu-me Saramago. Lia-me sempre algo do que estivesse a ler. Lia, contava e recontava.
Sempre que eu me sentia entediada com a brincadeira das bonecas e das casinhas ensinava-me a fazer muita coisa, outras coisas, coisas que não se ensinam às crianças por mero preconceito idiota.
Foi ele que me ensinou a articular conhecimento, ensinou-me a fazer paredes assentando tijolos, ensinou-me a fazer vigotas de pré-esforçado, ensinou-me a trocar uma lâmpada, ensinou-me a esticar aço e a fazer grampos, ensinou-me a juntar cimento com areia, ensinou-me a olhar o granito, ensinou-me a fazer escadas, ensinou-me a conduzir, ensinou-me os lagos e as montanhas, ensinou-me a ganhar e a perder, ensinou-me a ser tolerante, ensinou-me a raiz quadrada, ensinou-me a gostar de amarelo, ensinou-me a apanhar girinos nas poças de água, ensinou-me a traçar circunferências em jardins e a fazer tiro ao alvo, ensinou-me a não roubar ninhos, ensinou-me a amar a minha avó Felisbela e a ouvi-la, ensinou-me a gostar de mangas, ensinou-me a andar na rua, ensinou-me a admirar um camaleão, ensinou-me a construir um baloiço, ensinou-me a apanhar cogumelos, ensinou-me a compreender a trovoada, ensinou-me a dar nós, ensinou-me os cuidados a ter com a electricidade, ensinou-me o nome das ferramentas (alguns já esqueci), ensinou-me a respeitar os mais velhos, ensinou-me a ter cuidados básicos de saúde, ensinou-me a respeitar o mar, ensinou-me a educar uma vertigem de estimação, ensinou-me a gostar de teatro, ensinou-me a importância das minhas raízes e da família, ensinou-me a ter consciência social, ensinou-me o que era diplomacia, ensinou-me a ser inquieta e a não saber esperar, ensinou-me a justiça, ensinou-me a autonomia, ensinou-me quem era David Mourão Ferreira e quem era Einstein, ensinou-me a ceder e a resistir, ensinou-me a distinguir o bem do mal, ensinou-me o valor real das coisas,… ensinou-me a pensar diferente, …
                                                     ….ensinou-me a liberdade.

“Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado”
Anabela Quelhas (arquitecta) aprendente e anotadora de espaços.
*Homenagem a todos os pais do mundo que amam os seus filhos.
(Sem acordo ortográfico)


14 fevereiro, 2014

Cupido

O Cupido é um deus grego demasiado descuidado, insolente,... preguiçoso, trapalhão... o Júpiter pai dos deuses é que tinha razão em querer elimina-lo à nascença, pois como deus maior sabia bem a complicação e a incompetência deste ser com asas, mas sem bico, com crise de identidade, mamífero e ave, dois em um. Um deus que é deus, não dorme, descansa, medita, reflecte... sempre com um olho no burro e outro no "cigano", pois desatenções podem ser fatais.

O Cupido em vez de estar atento 24h por dia, não, entretém-se a tirar setinhas sem pontaria nenhuma e depois dá mau resultado. ... sei lá se padece de estrabismo?! Cupido é o responsável por tanta ralação e relação amorosa falhada e por tanta gente sofrer de solidão.

Ah deus vagabundo e fatela!

Quero lá saber do ar fofinho, angelical de anjo papudo que transporta... é um verdadeiro incompetente.

Cria paixões impossíveis, daquelas que todos sabem que não darão certo, e só mesmo os envolvidos acreditam que sim. Mas o tempo é fatal, passados dois anos, cumprindo-se o tempo biológico da paixão, esta faz as malas e abala, restando dois ilustres desconhecidos que raramente aceitam o erro, desfazendo-o.

Cria paixões unívocas: só atira uma seta, em vez de duas, e assim só um é que fica apaixonado, do género um ama e outro deixa-se amar. Este deve ser o maior grupo de todos. Este grupo é daqueles que parecem felizes a vida toda, mas na verdade não se passa nada, fazem teatro o tempo todo.

O grupo menor, bem menor é aquele que é constituído pelos felizardos, sortudos que ganharam a "lotaria": O Cupido acertou em cheio após período de investigação apurada.! Esses vestem-se de amor egoísta. Parafraseando o que diz uma amiga: Querem o mundo para eles e um corno para os outros.

Por fim estão os solitários, que podem ser os esquecidos do Cupido ou então integram um subgrupo, o da reciclagem amorosa

Os primeiros já esperaram tanto que a solidão passa a ser a companheira ideal, ou então já viram tanta burrice junta que quando vislumbram o Cupido ao longe, fogem e desaparecem da circulação. Não conhecem o Cupido, não querem conhecer o Cupido e tem raiva de quem o conhece.

Os segundos são aqueles que assumem a teoria dos 3 Rs, REDUZIR, REUTILIZAR E RECICLAR e esperam e desesperam pela atenção do dito cujo infatiloide, que está a olhar para os abismos e quer lá saber da quercus e do greenpeace.

Sinceramente não admiro o Cupido, não sei o que a Psiquê viu nele. Será que viu ou deixou-se apenas amar.

E os locais que o Cupido escolhe para manobrar as setas?

è do pior...

Bem, quando os casais se apaixonam no museu da presidência da republica, na igreja do Troufa Real em Lisboa, nas áreas vip de certas discotecas, no Portugal dos Pequeninos, durante as malfadas praxes, no panteão nacional ou até na loja Chao Lin,... eu acho que o Cupido está gravemente embriagado ou anda a fumar coisas estapafurdias.

in "Ensaios de escrita um projecto sempre adiado" Anabela Quelhas

26 janeiro, 2014

4Kg e 60gramas

Demorei anos a tomar a decisão.
Fiz estudo prévio, fiz ante-projecto, fiz projecto, fiz caderno de encargos com mapa de medições e de acabamentos… e finalmente a execução.
O mais problemático deste processo era a irreversibilidade da decisão. Esta questão de não poder mudar de ideias é algo que sempre me atrapalha em qualquer vertente da minha vida e em todos os momentos da mesma. Decido tudo no momento, porque me conheço… quando decido antes, chego ao momento e… já não é bem assim.
Fiz planos com régua e esquadro numa geometria espacial de fazer corar qualquer arquitecto da grécia antiga… escolhi mês, escolhi lua e escolhi sexo, num rigor matemático infalível.
No início eu só dormia, parece que todo o sono do mundo tinha desabado em cima de mim, sob a forma de sestas do solstício de verão. Depois deliciei-me com uvas deliciosas do Douro, moscatel.
Preparei o enxoval, eu mesma desenhei e confeccionei vestuário, quentinho para aquecer os dias e as noites do 1º Inverno. O cesto do tricot passou a habitar por baixo do meu estirador, com delicadas cores pastel, tendendo para o azul.
Um pacote de bolachas foi-se esvaziando nos primeiros meses na mesinha de cabeceira para evitar o enjoo matinal, pois eu queria mesmo ter uma gravidez sem dramas.
Ao terceiro mês, tive aquilo que um exotérico chama de um sonho premonitório. Conheci o meu filho em sonhos já com a idade de 2 anos. Incomodou-me, causou-me uma sensação estranha, que se confirmou exactamente passados dois anos. A criança que me acordava de noite junto à minha cama era a criança do sonho, sem tirar nem por.
Passou a ter nome curto e belo, inspirado numa história antiga das páginas centrais de livros conhecidíssimo da BD da Disney, cujo herói se encontrava entre dois exércitos, um que evocava S. Jorge e outro clamava por Santiago. Sempre foi esse o seu nome desde que fui menina também.
Um dia ao descer uma rampa, achei estranho o meu barrigão afinal pesar-me tanto. No dia seguinte já estava a fazer um almoço só de sopa e maçãs, para preparar as nove e meia da noite. 
Era domingo como hoje, há 22 anos.
O primeiro contacto com esta minha melhor criação, não foi através da visão, pois eu recuperava de uma brutal anestesia, foi algo muito mais profundo e inesquecível: o tacto. Ao tocar o meu rosto no seu rosto, pele na pele, como eu tanto aprecio e a nova vida presenteou-me a melhor sensação do mundo – a temperatura igual à minha e a textura macia da sua pele parecia nuvens de cetim, aconchegadas junto ao meu peito e ao meu pescoço – 4kg e 60gramas.

Só aí percebi como é bom o compromisso de uma nova vida e para sempre.

17 janeiro, 2014

O lado C

Todos nós temos o nosso lado A, o lado das atitudes politicamente correctas que assumimos nas relações sociais, dizemos que somos tolerantes sem o sermos, apenas porque parece bem, manifestamos paciência quando nos apetece mesmo esbofetear alguém que nos multou o carro quase bem estacionado, tentamos assumir o lado sério da vida, escondendo as nossas megalómanas fraquezas, incompetências e outras coisitas mais … enfim, é o nosso cartão de visita… do tipo – sabes quem é? Aquele fulano simpático, competente, charmoso, compreensivo e diplomata , que abre sempre a porta do automóvel às senhoras… tás a ver quem é?
Depois temos o nosso lado B, que só os mais íntimos ousam conhecer,… somos aquele que canta no duche e solta uns palavrões quando lhe pisam os calos ou quando já se esgotou a paciência. Temos conceitos por vezes desfasados do lado A, senão opostos e contraditórios, e ai aflora por vezes o nosso humor negro, a acutilância da critica e do parecer, e o acre do revanchismo, do machismo, do oportunismo, e outros ismos tal como narcisismo e egocentrismo. O lado B somos nós com letra grande, doa a quem doer, com taras, paradoxos e paradigmas no seu melhor. É por vezes um lado solitário que só se encarna quando nos fechamos connosco mesmo na cabine do duche, ou quando muito na retrete… os que são por norma solitários tem mais espaços para denunciar o lado B – eu por exemplo praguejo do pior quando cozinho, porque abomino cozinhar. O lado B é o lado mais interessante de cada um de nós, é aqui que somos francos, directos e honestos. Aqui também habita a sensibilidade, que por vezes, francamente só atrapalha. Aqui aflora a nossa alma de artista que todos somos, mesmo que só cantemos brejeirices do tipo “ bonito, bonito eram os tomates a bater….” Ou “sabão grá grá, sabão gré, gré"… salta-nos a fera que há em nós e discursamos, discursamos alto e bom som e inúmeras vezes, repetidamente e cada vez mais efusivamente, porque gostamos de nos ouvir a discursar para o nosso chefe, do tipo, “Caríssimo senhor administrador, isto é tudo uma merda, uma grande e valente e monstruosa merda, parece que estamos no saneamento do pingo doce, e a sua ignorância mata mais do que o cancro. A sua descompetência parece uma tábua de engomar roupa depois de ter engomado a roupa de 40.000 comboios de prostitutas, a sua organização parece a cidade de Monbai em hora de ponta…” ( o discurso só se interrompe quando nos cai o sabonete na base do duche, ou quando reparamos que estamos sem toalhão de banho na saída da banheira).
Depois e finalmente temos o nosso lado C, que nem nós conhecemos muito bem. É o lado misterioso e complexo que habita em nós, não sei onde, e se manifesta sempre que dormimos, no nosso sonho que raramente lembramos. O nosso lado C faz longas e longas metragens de tudo e de nada com milhentos personagens, guiões bizarros, mas com realizador desmiolado, que somos nós, que pouco retemos de metros e metros de fita, deixando escapar autênticos filmes dignos de vários óscares na classe SURREALISMO..
É aí que a nossa complexidade se alia à omnipresença, dando a cara a todos os recursos possíveis e impossíveis, remetendo a ficção cieníifica, para o depósito das ciências menores. Já mergulhei em situações extraordinárias neste lado C, as minhas, como cinéfila competente de REM, não me lembro, mas as dos outros, traduzem-se no mundo real, normalmente em palavras balbuciadas, em diálogos pespontados, em comunicações ilógicas e consistentes de tudo. Como interlocutora e investigadora desse lado C, aconselho a nada contrariar, nos balbuciamentos imprevisíveis. Numa hora ouvimos discursos sobre estantes italianas, noutra hora apresentam-nos um diálogo feito apenas de preposições, e temos também a fase narcisista, “Diz-me há alguém melhor, que eu, há? Há alguém melhor que eu?…. Claro que devemos responder, Não claro que não, só Deus!!!!. Não se confunda tudo isto com sonambulismo. Não, Um sonâmbulo é pacifico, levanta os braços e dá corda aos membros inferiores e o máximo que pode acontecer, é querer deitar-se dentro da casota do Boby… Eu refiro-me ao lado C que se manifesta por vezes intervalado com o lado B. O interlocutor fala de alhos e o autor do lado C responde bugalhos, um dialogo inteligente (!?) e hermético (!?)onde o interlocutor tenta construir um fio condutor no dialogo e o artista do lado C ora fala da comida congelada que esta na arca frigorifica, como do tsunami do Rio de Janeiro que ainda irá acontecer, passando pelos botox corbusianos implantados na capela de Ronchamp, e o globo de ouro do sr Aristides da mercearia… e afinal dá-me os cotonetes e os coentros. Esta visão esofágica do exterior para o profundo do lado C, através de um sonilóquio, aparentemente desgovernado, ora sereno, ora emotivo, ora melodramático ensonado, devolve-me sorrisos angelicais que se desconseguem de outra forma. A delicadeza da situação, dessa algraviada de palavras na língua do proprietário, proferidas na 1ª pessoa cheias de convicção, contrastam com a sua negação logo que o lado C se transfere para o B ou para o A. Não vale a pena insistir ou contrariar, é pura perda de tempo, resta-nos apenas a delícia de dialogar sem nexo, entrando nesse mundo virtual de pantufas, como se entra num conto de fadas. O resto… resta-me escrever.
In “Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado” Anabela Quelhas