21 novembro, 2014

O defunto falecido


O defunto falecido      

            Há histórias que originam verdadeiros filmes, pois são invulgares e com conteúdo forte, tornando-se bizarras quando analisadas com sentido crítico. No Portugal profundo não há só as histórias populares da tradição oral, também há outras histórias que possuem a dualidade do real e da fantasia, capazes de dar algum contentamento a um realizador neorrealista.

 

            Conheci uma figura impar, já desaparecida, que assinou como autor de algumas histórias bizarras, e que, contadas e recontadas na 1ª pessoa, lhe pertencem do princípio ao fim. Com personalidade aventureira, habituado às adversidades da vida, capaz de imensas proezas inimagináveis, sem os valores bem aferidos, disposto a correr riscos e com uma linguagem pejada de asneiras cabeludas constantes... ele contou que, num momento da sua vida, entre diversas profissões ocasionais que desempenhou, fazia com um automóvel citroen “boca de sapo” com 4 vitesses para a frente, viagens entre Portugal e França, servindo especialmente os emigrantes portugueses, transportando-os ou realizando serviços legais e ou ilegais, dependendo do ponto de vista e do preço. Não era zarolho, mas corria riscos na mesma, sem grande responsabilidade e sem medir as consequências para ele e muito menos para os outros. Penso que a ilegalidade era o fato que lhe assentava melhor.

            Um belo dia deparou-se com o desafio de transportar ilegalmente um defunto falecido numa bidonville parisiense para Portugal, já que os familiares não teriam dinheiro para a trasladação legal ou nem saberiam como faze-lo. O transporte de um falecido envolve responsabilidade médica e jurídica, um processo burocrático enorme, e ter a bolsa recheada de dinheiro para fazer face às despesas. Os familiares tinham poucos recursos, apesar do carro em 2ª ou 3ª mão guardado para vir de férias au Portugal.

            Ele dispôs-se a faze-lo sem grandes complicações, recebendo logo à partida a remuneração combinada para lhe dar ânimo para a viagem. Recolheram alguns francos pelos diversos filhos, e apostaram as “fichas” todas nesta solução.

            Recolheu o defunto que tinha falecido há menos de uma hora, vestiu-lhe um fato preto, sentou-o e amarrou-o ao banco do passageiro do carro dele (ainda não havia cintos de segurança), apertou-lhe o casaco, colocou-lhe un chapeau e a gravata e rematou com uns vérres bem escuros. Arrancou para Portugal, um Portugal que ainda não era Europa, com a garrafa de bagaço no porta-luvas e os cigarros 3 vintes no bolso da camisa. A família seguia noutra viatura, à derrière..

            O defunto falecido portou-se muito bem, parecendo dormir o caminho todo. Pararam para dormir um pouco. Pararam para fazer as refeições – o farnel do arroz de frango e umas sandes de fromage. O defunto não teve fome, manteve-se sereno, abstémio e sempre com os seus óculos escuros, que ora lhe filtravam o sol, ora lhe filtravam o luar…parecendo dormitar. O queixo descaia um pouco e foi preciso reforçar o visual com um cachecol. Numa das fronteiras, os carabineiros, rodearam o carro, espreitaram, pediram documentos, interrogaram e respeitaram o sono do senhor adormecido. A família em pânico dentro da sua viatura, visualizando todas estas operações, rezavam pai nossos e avé marias à Nossa Senhora de Fátima, para que o defunto não fosse convidado a sair….

            O motorista aventureiro quando recontava a história dizia que o pior estava para vir.

            Entraram au Portugal com sucesso e chegaram à aldeia lá para os lados de Montezinho, onde a urna e a cova no cemitério já estariam abertas e toda a papelada tratada, pois previa-se o odor insuportável do final da viagem. De facto o pior estaria para vir, e que seria retirar o defunto do veículo que o acolhera ainda quente e por mais de 30 horas de viagem.

            O post mortem, a viagem, as fronteiras e o fumo do permanente cigarro 3 vintes do autor desta proeza, endureceram-lhe os músculos, os tendões, o comportamento e até a alma. O homem era grande, vinha bem encaixado entre a cadeira e o tablier, teso como um presunto, sem maleabilidade alguma para se retirar do veículo.

            - Então Galdra? como resolveste le problèm?

            - Ca, ca ....lho. (ele era gago) titive que que lhe partir as pernas! Q’até deu jeito para o meterem na urna, senão ela não fechava com as pernas dobradas.

            No final todos os ouvintes riam por imaginar o Gualdra com um martelo a fazer o desencarceramento do defunto dorminhoco.

            - Olha lá e se os Carabineros tivessem percebido e mandassem sair o senhor do chapéu?.

            -Ca, cara .... lho eu já estava a penpensar, pupu..a que pariu eu eu fingia que quia buscar os dodocumentos ao cacarro queque  nos seguia e fugia que nunnunca mais ninguém meme apanhava!.

            Pobres dos familiares, que pagaram bem e seguiram confiantes este aventureiro, que nem pensaria duas vezes em deixa-los a todos em maus lençóis.

            Um cromo esta figura!

            Digam lá se não dava um filme????!!!!!

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In” Estórias de um Portugal profundo” Anabela Quelhas