24 abril, 2014

Afinal onde é o meu lugar

Afinal onde é o meu lugar? 
            Por onde andava eu há 40 anos atrás???
            O dia 25 de abril de 74 apanhou-me a sair da adolescência, numa idade em que já era uma observadora atenta do que me rodeava, sensível aos ideais ligados à igualdade e à fraternidade multicoloridas, conscientemente contra o “orgulhosamente sós” de Salazar, mas ainda saudavelmente ingénua e cheia de sonhos.
            Como estava no hemisfério sul, só tive conhecimento da revolução no final do dia seguinte, muito em segredo antes do jantar, deixando-me de orelhas em pé, pois a referência segredada foi segredada entre adultos apenas. Pareceu-me nascer ali um entusiasmo cauteloso, que me fez ansiar pelos jornais do dia seguinte, para finalmente ver Spínola como grande herói, com fotografias de página inteira, remetendo Otelo para segundo plano e Salgueiro Maia para terceiríssimo e desvalorizado plano. Nessa altura não me apercebi disso, logicamente. Incomodava-me aquele monóculo e o pingalim que segurava na mão, desconfiando da personagem, que tais objectos transportava, parecendo-me mais um tirano do seculo XIX, do que um revolucionário do século XX. Aquele monóculo nada tinha de modernidade. O modelo era Che.  
           
Nos dias que se seguiram, o monóculo virou moda e era simulado de forma irreverente por caricas de coca-cola, para posarmos nas fotografias de grupos de amigos adolescentes, crentes num futuro risonho e livre. O poster de Che Guevara colado nas paredes dos quartos, os discos clandestinos de Zeca Afonso, a ideia de um líder chamado Agostinho Neto, deixou de ser utopia e passou a ser tema de conversa constante, num processo de descoberta e aprendizagem rápida da democracia e da liberdade. Eu vivia com o BO (bairro operário) mesmo ao lado, suscitando muita conversa clandestina que o meu espirito curioso retinha, nos anos de adolescente. Contavam-se histórias… o cartão de visita da miscigenação urbana não colhia no meu lado, impulsionando diversas questões que eu ia organizando na cabeça, e que todos omitiam os esclarecimentos de que era ávida.
            Nada mais foi igual, a sociedade de Luanda entrou em sobressalto progressivo. A ideia doce e romântica de uma independência desejada e de um salto de liberdade para um futuro de todos, rapidamente se transformou numa contagem decrescente para a guerra civil, que tal como todas as guerras são injustas, sangrentas, desumanas, mutiladoras e trágicas. A descolonização rápida, necessária, mas pouco eficiente e nada assertiva, gerou meio milhão de retornados e refugiados, seres humanos desprotegidos, incapazes de se organizar e lutar pela sua permanência nos territórios independentes, que apenas tiveram como alternativa, a saída.
            Percebi, com 16 anos, que não tinha autonomia para tomar decisões sobre a minha vida e para a minha vida. Descobri que devia obedecer às decisões dos meus pais, mesmo que me desagradassem profundamente. Constatei que não era suficientemente crescida para viver sozinha na terra que me viu nascer, nem era suficientemente criança, para tudo me passar ao lado.
            Após poucos meses do 25 de abril, anunciaram-me que tinha duas horas para me despedir de Luanda, pois provavelmente iria ter um bilhete de ida para Lisboa, sem volta. Já passava das 18h30m.
            Não fui ouvida, nem achada!
            Trinta minutos foram para comprar dois agasalhos, um casaco de lã azul e uma camisola roxa, que por mero acaso e sorte havia numa loja junto ao local onde vivia. O resto foi a despedida. Despedi-me de lágrimas nos olhos, e vários nós na garganta, de uma cidade linda. Ao longo desse tempo, revi alguns momentos das minhas vivências frágeis e ingénuas, que farão eternamente parte de mim, retive no olhar sítios da minha terra de nascimento e de coração. Faltou-me o tempo para me despedir de amigos, para anotar contactos, para criar novas pontes de ligação para o futuro. Nem queria acreditar que não voltaria, que poderia nunca mais ver e estar com os meus amigos. Algo desconfortável e cada vez mais aterrador se instalou na minha racionalidade, tornando-me incapaz de tudo, excepto obedecer.
            Naquela noite, cresci de repente vários anos. Passei a ser adulta da noite para o dia seguinte, lutando entre duas lógicas, a minha lógica dos afectos e a lógica da descolonização, indiscutivelmente necessária, quanto a mim. Eu já entendia a democracia como meta maior, já tinha observado a digestão difícil de várias revoltas e era sensível ao conflito implícito da acção colonizadora.
            As luzes reflectidas na água negra da baía de Luanda, assumiram formas irregulares e esborratadas, resultantes da luz e das minhas lágrimas silenciosas, que teimavam correr-me pela face enquanto viajava no banco de trás do automóvel do meu pai em direcção ao aeroporto. Conferi cada rua, cada avenida, cada cruzamento… olhei pela última vez os sítios onde me encontrava com os meus amigos.
            No dia seguinte, passei a ser refugiada em terra europeia. A coincidência entre duas realidades: a minha realidade geográfica intersectada com a minha realidade afectiva, temperada pela revolta da não decisão. Entrei num mundo sem fortes referências para mim, onde decorria uma revolução com alguns contratempos pelo meio - eu, cheia de contradições e com novas e maiores responsabilidades, um pouco entregue a mim mesma. O rótulo de retornada e não progressista também se colou a mim em algumas situações menos felizes na integração na sociedade portuguesa. A desconfiança sobre a minha caderneta escolar que testemunhava bons resultados académicos, a desconfiança sobre os meus princípios e valores, a falta de solidariedade entre colegas de escola, e a ausência de camaradagem extra escola, premiaram-me em diversos momentos ao longo de 74/75, nas terras “do choupal até à lapa”.
            A ruptura violenta e traumática nos meus afectos, converteu-me em jovem adulta silenciosa, precoce e introvertida, com as sensibilidades adormecidas, ou talvez anestesiadas, como forma de me proteger das novas realidades. A racionalidade e as emoções, combateram-se num duelo entre uma aprendizagem ideológica e as orientações do politicamente correcto, potencializada através da pintura realizada em horas de ócio no Museu Machado de Castro, ao longo de alguns meses. 
            Alguns amigos foram reencontrados quase 30 anos depois, outros permanecerão sempre no fio da navalha, entre o estar ou não estar vivos.          Quem me desenhou o destino era graficamente inábil como tenho confirmado ao longo da vida.
            Costumo dizer que a minha vida afectiva é um puzzle incompleto, onde faltam algumas peças. Das peças recuperadas, nem todas me trouxeram alegria, pois os anos passaram, e as peças tornaram-se menos luminosas, com contornos desligados da minha história e por vezes contrários às minhas convicções.
            Os anos passaram, não voltei mais.
            Passei a ser assumidamente uma sem terra, ou contrariando e ampliando até ao absurdo, também poderei dizer que passei a ser uma cidadã do mundo, o que em termos práticos dá no mesmo. A lei diz que tenho nacionalidade portuguesa, o meu BI também, e eu continuo a sentir-me sem raízes nos vários locais onde já vivi, neste país. Vivo de sensações armazenadas, entre sombras de jacarandás e aromas de acácias rubras, desconfiguradas em terra fria de bravos navegadores da cauda da europa e uma vontade férrea de inovar com vistas para o futuro.
            Sou portuguesa sem ter nascido aqui e não sou angolana porque não vivo lá. Afinal sou de onde? Um paradoxo desta coisa de se ser eternamente de algum lugar, sem efectivamente o ser, mas que nos preenche os sonhos de todas as noites - a crise de identidade que muitos angolanos sentem e vivem, provavelmente entenderá o verdadeiro e profundo significado destas palavras rabiscadas a partir do 25 de abril de 74.
Afinal onde é o meu lugar? 
In” Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado”
Anabela Quelhas (aprendente e anotadora de espaços)

(sem acordo ortográfico)