30 outubro, 2013

Podia muito bem ser eu

Podia muito bem ser eu. Juntava a água com sabão e

procurava uma palhinha feita de fibra vegetal verdadeira para soprar. Não havia detergente. Governava-me com o sabão rosa da cozinha. Ia até uma das varandas da minha casa, mal chegava à parte superior do gradeamento e soprava. Entrava num sonho circular feito de transparências de azul e anil e acreditava que a vida dos adultos era muito melhor que a minha. Se eu fosse adulta não teria de usar tranças, nem soquetes, nem laçarotes e poderia ocupar-me com as coisas que eu considerava verdadeiramente boas - andar na carroçaria de uma carrinha e em pé, tomar banho de mar sem bóia, conduzir uma mota, pintar com trinchas, fazer contas de cabeça com ar de preocupada... poderia comer bife com batata frita todos os dias, poderia usar saltos altos e bigodins nos cabelos e podia recolher todos os cães perdidos. Poderia ter um jacó, que conversasse permanentemente comigo.
As bolas soltavam-se e levitavam no ar por segundos que para mim pareciam eternidades.
in "Ensaios de escrita um projecto sempre adiado" Anabela Quelhas.