15 fevereiro, 2017

Sei sentir a desolação

Sei sentir a desolação
                Dois dias de vendaval e duas noites de arrepiar, com o vento a assobiar transformando qualquer casa, em casa assombrada, permitem que tudo voe fustigado pela chuva. As telhas resolvem sair do lugar, as árvores vergam-se parecendo feitas de plasticina, os rios transbordam e o S. Pedro lá em cima, esquecido de nós, navegando na net ou jogando numa playstation celestial. Depois de tudo isto e das peripécias que se adivinham, há que acordar cedo para abraçar a montanha. O frio gelado e seco penetra pelas malhas das camisolas de lã, pelas solas do calçado, entre os dedos das luvas, doptando o meu nariz da sensibilidade de num marco geodésico.
                Hoje foi assim: as rochas graníticas, a montanha, os regatos, o mato rasteiro, os líquens, a floresta, a visão ampla com 360 graus de amplitude, as pessoas habituadas a lidar com o frio agreste das montanhas beirãs, e eu….
                Os bombos, tocados por habitantes de aldeias vizinhas, exibem sonoramente a consideração por S. Brás, no dia cinco de fevereiro, competindo na percussão ritmada, dando voltas à pequena capela onde cabe pouca gente.           
                Não interessa o frio, não interessa o vento cortante vindo de norte, não interessam as nuvens negras, que correm no céu sem cerimónia, anunciando que o vendaval ainda não passou e certamente a chuva desabará de novo sobre nós. Afinal todos os anos é assim. Estamos em pleno Inverno – tempo de meias de lã, ceroulas, gorros, camisolas interiores, cachecóis, samarras, comidas e bebidas fortes e tudo que possa aquecer o frio.  
                Interessa o encontro entre várias gerações em S. Brás dos Montes, junto à capelinha, onde se rezará a missa de festa por volta do meio-dia. Desfilam os homens com os bombos conforme vão chegando ao cimo do monte. As crianças socorrem-se dos gorros de orelhas, cobertos de casacos quentes com carapuço, para fintar as otites e os resfriados. Os homens cobrem a cabeça com um chapéu…
                PUM, PUM; PUM; PUM
                … e cada grupo encaminha-se para o espaço reservado à sua comunidade, onde irá merendar os petiscos saborosos desta região, trazidos de casa. Apeiam-se os bombos e ensarilham-se as mocas e varapaus do povo, que os acompanham, para que não haja a possibilidade de haver agressões mal pensadas, depois de um copo de vinho, para acertar contas antigas ou contas mal feitas. Parece que antigamente houve uma lei que determinou este comportamento, fazer descansar as mocas durante a permanência naquele recinto – vale mais prevenir do que remediar.
                Ouvi lamentos:
                - Este ano está menos gente! Antes, as pessoas cobriam os montes.
                - Não vieram nem metade dos bombos, porque não há quem os toque.
                - O povo não afluiu, talvez receando o mau tempo.
                - Não, não, saíu muita gente! Há gente que foi para fora, lutar pela vida.
                Eu como forasteira não consigo avaliar, mas já li este desânimo, lamentado e escrito noutros lugares com paisagens semelhantes, onde reina o granito, o céu e o frio, e onde as pessoas escasseiam cada vez mais. O desânimo por ver desaparecer tradições, que se foram repetindo durante séculos, criando identidades e unindo pessoas, conferindo orgulho a quem vive nestas regiões inóspitas e lembrando periodicamente a parte simbólica da sua cultura, espelha-se na perda do brilho no olhar, dos que restam e que teimam em permanecer, comendo uma lasca de presunto a um canto, observando os espaços vazios da sua gente.

                Sei sentir a desolação da morte agonizante deste Portugal, perdido entre auto-estradas e caminhos de terra enlameados, descoordenado com a vida contemporânea feita de políticas pouco assertivas e desumanizadas, onde as pessoas têm de desistir dos locais que as viram nascer… abandonando, família, amigos, afectos e território.
AQ
Publicado a 15/02/2017
em NVR 

13 fevereiro, 2017