29 março, 2016

23 março, 2016

Francisco e o pardalito

Os livros são para construir, reflectir e partilhar.
23/03/2016

Brevemente partilharei a minha reflexão.
Grata pela vossa presença.

Ilustração






 “O Francisco e o pardalito” (ilustração)
Intervenção da ilustradora na apresentação do livro infantil
23deabrilde2016 

            Abandonei a ilustração exuberante do 1º livro do António, criada através de fotografias e desenho digital e segui outro caminho, pensado inicialmente como minimalista, aproximando-me o mais possível da ingenuidade do mundo da 1ª infância
            Reflexões do percurso criativo:
·        A ideia inicial foi uma aproximação a Osvaldo Cavandoli, desenhador italiano que ficou famoso devido aos desenhos animados concebidos através de uma linha horizontal, que se vai transformando nos personagens da história a contar (https://www.youtube.com/watch?v=skb2gKR7rOk). Desta primeira inspiração resultou apenas a linha horizontal que serve para dividir o texto da ilustração.
·        Evoquei os artistas plásticos que fazem um percurso de 17 anos de Escola, para aprenderem a desenhar e depois quando terminam esse percurso ao nível superior, andam a vida inteira a consolidar esse conhecimento e a tentar conseguir transforma-lo criativamente. Mas há momentos que querem desenhar como as crianças, para as crianças e já não sabem faze-lo. Precisam de mais alguns anos para desaprender a desconstruir aquilo que aprenderam, mas com pouco sucesso.
·        Quando o meu filho era muito pequeno, ficava deliciada com os desenhos dele… - a fase primária do desenho, quando desenham tudo geométrico, com poucas ligações à realidade – é uma fase embrionária da representação do real. É uma fase lindíssima, onde cada um vê o que quer ver, mas é curta. Picasso, Kandinsky e Miró integraram-se nesta fase do desenho tendo demorado décadas para fazer a regressão ao mundo infantil e à respectiva representação abstrata.
“Primeiro desenhava como Rafael, mas precisei a vida inteira para aprender a desenhar como as crianças.” Pablo Picasso
Depois, as crianças aprendem a observar o que está à sua volta e a estabelecer ligações entre os seus neurónios, a articular conhecimento e começam a desenhar casas, árvores, montanhas, a família… ainda sem proporcionalidade, sem perspectiva, sem escala… também é uma fase interessante, rica em significados sobre a personalidade da criança, mas já não é a mesma coisa!
·        Já realizei diversas tentativas mas ainda não consegui aproximar-me à expressão infantil – é um caminho muito difícil de fazer porque todos nós perdemos a ingenuidade quando começamos a observar o mundo que nos rodeia. Isso dramático e reflecte-se no desenho, é muito difícil fazer a tal regressão referida.
·        Esta procura duma expressão infantil levou-me ao passado. Revi uma pintura do meu filho com 2 anos realizada em 5 minutos. Convidaram-no para pintar e ele pegou num pincel de forma decidida, sem qualquer hesitação, com 2 cores apenas, verde e azul fez uma pintura abstracta bela e equilibrada, rematada de imediato com um: Já acabei!
Os artistas vivem sempre dois momentos dramáticos na criação de algo: o princípio e o fim. A tela vazia, algo cheio de nada gera medo, insegurança e ansiedade. No fim, saber o momento certo em devem parar, evitar “o mais” que será certamente excesso e inviabilizará o sucesso, gera preocupação, hesitação, indecisão e de novo a insegurança. A 1ª infância não sofre disto.
·         Tenho aprendido muito com os meus alunos sobre muita coisa e eu apenas lhes ensino a não ter medo de desenhar - tal como o Francisco que ensinou o pardalito a voar. Inicialmente ficam em pânico (os alunos), quando peço a um aluno para subir para cima de uma mesa, e os outros têm 10 minutos para o desenhar utilizando apenas a caneta preta e o papel. É como fazer trapézio sem rede. Não há borracha, não há afia, não há tempo para comentários laterais, não há tempo para pensar, nem para criticar. É desenhar sem medo, “dar o peito às balas” num ensaio equilibrado entre a análise e a síntese do que se pretende ver e representar. Acreditem, os resultados são fabulosos e o medo transforma-se em prazer e em aumento de auto-estima, porque percebem que afinal conseguem desenhar. Pena que os ministros da educação desconheçam isto!
·        Está na moda o conceito que desenhar e pintar são acções terapêuticas, que proporcionam relaxamento, bem-estar… muitos psiquiatras receitam aos pacientes para contrariar o stress. Supermercados e livrarias enchem-se de álbuns com desenhos para colorir, alguns com mandalas, adicionando a filosofia da ligação entre o Eu e o Universo… Nunca estive de acordo com isto. O acto criativo é um processo de grande ansiedade, de sofrimento, de muita transpiração e pouca inspiração. Relaxamento só existe no fim.  
·        O cérebro envia mensagens até à mão para desenhar, são 80cm de percurso mas este não é tão direto e curto como aparenta. O percurso é rápido, mas longo, porque percorre o nosso mundo interior e possibilita que este apanhe boleia e se exteriorize. Mas temos medo. Tememos as críticas dos outros e as nossas. Receamos a exposição do que somos, receamos o nosso auto-conhecimento e as nossas fragilidades - já não temos a ingenuidade original que leva as crianças a fazerem representações excepcionais sem qualquer censor crítico inibidor.
Dou aulas a alunos com 12/15 anos, mas se fosse possível, gostaria de receber aulas de crianças de 2 anos.
·        No ano passado deram-me a oportunidade de acompanhar um trabalho realizado com crianças de 3-5 anos e verifiquei como eles pegaram facilmente nos temas de Joan Miró, recriando-o. Foi fantástico … não os assustava o papel em branco ou a tela vazia, agarravam nos pinceis e desenhavam os temas de Miró, com grande familiaridade. Aquelas crianças tinham a ingenuidade que Miró levou anos a imitar. Quanto a mim, foi o artista plástico com formação superior, que melhor conseguiu fazer essa regressão, sem perder o conhecimento da estética. Estas crianças ensinaram-me muito.
·        Recordei também a minha mãe, que não tendo qualquer formação artística,  desenhava para me entreter – até hoje tenho saudades dos desenhos dela, muito naifes, muito caricaturados (figuras com corpos pequenos e rostos grandes, narigudos, de chapéu e bigode, saia plissada para as mulheres….).
Um belo dia estava a consultar um catálogo de azulejos para aplicar num infantário, do qual tinha realizado o projecto de arquitectura e deparo-me com uma linha de azulejos com um figurativo parecido aos desenhos da minha mãe. Isso converteu numa fã do pintor português João Vaz de Carvalho, autor desses azulejos. Não o conheço pessoalmente, mas acompanho o evoluir da sua obra dentro deste seu estilo pictórico que tanto me diz afectivamente.

Ilustração realizada:

            Regressando ao livro, devido à dificuldade de me expressar com desenho infantil, optei por uma representação “à arquitecto(a)” que é a minha condição -  um esquiço contendo apenas o registo do essencial, desenhado com caneta preta em poucos segundos com, traço seguro, rápido, alguma textura, alguns valores contados, mas sem excessos, apenas com o rigor necessário que conduz ao entendimento.
            Tratando-se de uma obra infantil, acrescentei alguns apontamentos coloridos, pois a cor é importante para os pequenos leitores. Fugi um pouco da realidade e assumi apenas o recorte da mesma, com apontamentos coloridos articulados com a cena registada, convertendo esta ilustração num misto de desenho em grafito e de colagens.

Apontamento final:

·        Há quem entenda que uma obra de arte tem de ser realista, com representação da realidade que nos rodeia tal e qual ela se apresenta, devendo transmitir mensagens ao observador, coincidentes com a intenção do autor. Isto significa apenas dificuldade em entrar no mundo abstracto, no mundo onírico do imaginário.
Se assim fosse a arte tinha parado com Leonardo da Vinci. Este é o génio da Humanidade, desenhou tudo o que havia a desenhar com, rigor científico, rigor matemático, rigor anatómico, que quase ninguém consegue atingir. Séculos mais tarde é inventada a máquina fotográfica e então a realidade ficou muito fácil de captar e representar – a preto e branco, a cores, tons sépia, claro, escuro…
Hoje o que distingue uma obra plástica é a originalidade e a capacidade que tem para surpreender e despertar interpretações e emoções individuais ou colectivas aos observadores/receptores. A fuga para o imaginário é a forma como eu entendo e valorizo a obra de arte.
Referência a Salvador Dali com “Persistência da memória” – obra sobejamente conhecida, já todos opinaram sobre a obra, psiquiatras, psicólogos, pintores, sociólogos, poetas, arquitectos, professores, críticos de arte… Já tudo se imaginou acerca daqueles relógios deformados. Curiosamente, quando essa obra se tornou pública e alvo de tantas opiniões/críticas, um jornalista entrevistou Salvador Dali, pretendendo saber a grande teoria do autor sobre a mesma. Dali, como sempre, surpreendeu explicando que desenhou os relógios após o jantar, do qual constava queijo Camember, que tinha derretido no seu prato e daí a representação deformada dos relógios, ridicularizando um pouco tanta teoria inventada.
“Como posso querer que os meus amigos entendam as coisas loucas que passam pela minha cabeça, se eu mesmo, não entendo?” Salvador Dali

Conclusão:
            Fiz este apontamento, apenas porque o autor do texto descobriu algo mais nestes desenhos, uma vertente didáctica – a possibilidade de as crianças pintarem os desenhos.
            Aqui fica uma homenagem à ingenuidade das crianças, para mim tão interessante e que continuarei a explorar para conhecer melhor.  

Anabela Quelhas 

21 março, 2016

QUANTOS BRAÇOS TERÁ O MUNDO?

Quantos braços terá o mundo?          

Tenho dificuldade em ser quem não sou, procurando-me entre contradições e o mais onírico dos meus sonhos. Destruo os muros, as vedações de arame farpado e outras barreiras que me são incómodas, que me condicionam e descubro novos horizontes, fugindo de mim… fugindo de quem sou na verdade, vendo-me à distância e aproximando-me novamente, adopto fantasmas, apuro visões, reforço convicções arquivadas ao longo dos anos, redescubro outras que nunca tive, num ensaio dialéctico, que nunca é gratuito.
         Neste meu lirismo aprendente tenho dificuldade de ser quem não sou.
         Por vezes apresento-me outras personagens candidatas a mim, para adopção, para aluguer temporário ou para residência permanente. Comparo-as comigo, desenhando-lhe simetrias e translações, criando passaportes de vida que no final não consigo utilizar. Crio sombras de chão e de vento, produzo lágrimas de particulares ou de exageros, gerando energia crítica sobre mim, sobre os outros e sobre o mundo, que se torna essencial para minha lucidez. A sensibilidade e a rigidez articulam-se numa assimilação perfeita de ocasião. A maleabilidade e o primarismo ora dão as mãos, ora se tangenciam sem rumo. A doçura desconhecida, resgato-a de locais distantes no espaço e no tempo. Aceito desafios, sou curiosa, ousada e atrevida, na eliminação de fronteiras, sem pensar muito bem, onde é o meu lugar ou se tenho algum lugar. De onde sou? Questiono-me. Sou de um mundo com raízes diversas e plurais nunca adivinhando o meu destino. Não sei se sou terra, se sou fogo, se sou ar, terei uma amálgama de tudo diluída em águas serenamente superficiais e revoltamente profundas, onde navego solitária sem grandes tragédias.
         Mas, continuo com dificuldade em ser quem não sou.
         Só tenho comigo as empatias, riqueza acumulada pelos amigos verdadeiros, alguns que mal conheço, perdidos neste mundo e nos outros que se adivinham próximos, sendo sempre eu em todos os lugares, pacíficos ou não. Não sei beneficiar das crenças que facilitam a vida e a resolução das adversidades, que nos limitam a consciência todos os dias.
         Quantos braços terá o mundo, para me acolher nesta insatisfação diversa e sempre renovada que não se deixa tolher, nem moldar por qualquer natureza?

In “Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado” Anabela Quelhas
Publicado em NVR