29 setembro, 2021

O pessoal que não vai votar

 

O pessoal que não vai votar


            O pessoal está farto de votar?

            Que raio de democracia é esta em que um grande número de pessoas se demite do dever/direito de votar?

            Desde 1982 a abstenção sobe como um balão.

            É urgente reflectir sobre isto.  Como se pode criticar as acções políticas, se depois cruzam os braços e não vão votar?

            Antigamente o aumento da abstenção justificava-se com a meteorologia – chovia, estava frio, estava quente, um dia cheio de sol e a malta foi para a praia...

            A meteorologia esgotou-se, e actualmente é urgente avaliar esta situação que se revela um pouco dramática. É evidente a tendência, para muitos preferem fazer parte dos problemas e nunca tentarem ser parte das soluções. Ser parte da solução é de facto ser activo, consequente, ir votar, escolher, selecionar, contribuir para a melhor escolha possível sobre quem gere este país. Ser parte do problema é criticar quem faz, é inventar e reinventar questões, é ligar o complicómetro criando obstáculos e seguir teorias obscuras colhidas nas redes sociais, mas permanecendo sempre do lado do problema, alimentando-o e engordando-o até à obesidade.

            A abstenção justifica-se também pelo foco da eleição, se é para eleger deputados ou se é autárquica. No primeiro caso vale o distanciamento como justificação da ausência, no segundo vale a menorização da importância das mesmas. O resultado é o mesmo.

            Segundo os politólogos “Há 3 tipos de abstencionistas: o estrutural (o que não vota há muito tempo), o segundo que é o que sabe que o partido que está mais próximo dele não vai ganhar e o terceiro que é o que hesita entre o partido que vai ganhar e o que é mais próximo dele“. Será?

            Os cidadãos vão-se afastando progressivamente do acto eleitoral e o sinal de alarme começa a soar. No ano passado o “bicho” serviu de justificação, agora já poucos ligam ao “dito cujo”...

            A malta vai ver os ciclistas a passar na rua, vai ao shopping a toda a hora, vai aos concertos, vai esticar o esqueleto ao fim da tarde,... a malta vai até à praia, vai para a esplanada, vai para a fila do Mcdonald’s... a malta até está com saudades  de ir para a discoteca, aguarda ansiosamente uma black friday, e até dá a volta dos tristes ao fim da tarde e bebe umas bejecas num bar ranhoso....mas, a malta acha uma seca ir votar!!! A preguiça fala mais alto e deixam-se ficar pelo sofá a ver a Netflix praguejando “que chatice, hoje as televisões vão dar eleições toda a noite!”.  

            É mais fácil deixar os outros escolher, assim se escapa da responsabilidade, possibilitando a frase batida “nem sequer votei nele”, ou seja, a responsabilidade é toda entregue e de bandeja, aos 50% que levantaram o rabo do sofá e foram até à secção de voto e nem sequer esperaram muito tempo para votar.

            Não há desculpas. Há irresponsabilidade e falta de reconhecimento e valorização por todos aqueles que organizam o processo eleitoral e passam o dia nas mesas a receber os eleitores.

            Custa tanto mudar mentalidades!

            Ainda há os resilientes que no local de trabalho ou no seu círculo de amigos, perguntam bem-intencionados, “então não vais votar?” os argumentos do não, convertem os resilientes em perfeitos idiotas e néscios do seu grupo, como se eles é que estivessem errados.

            O Presidente da República fez o apelo ao voto e até referiu, "É um voto decisivo. Nos fundos europeus, a parte mais significativa vai ser gasta durante os quatro anos pelos autarcas que são escolhidos, hoje". Nem assim!

Publicado em NVR, 29/09/2021

25 setembro, 2021

MOSTEIRO DE OSEIRA

 

O Mosteiro de Oseira (1123) – um gigante de granito

Localidade - Oseira, no concelho de San Cristovo de Cea, província de Ourense.

Mosteiro medieval de fundação beneditina que ao longo da sua história teve uma grande importância econÓmica e social para a comarca e terras mais distantes.

3 claustros

Arquitetura românica e barroca.

Destaque para a sala capitular – colunas retorcidas, com capitel transformado em palmeiras

Refeitório  -  peças que formavam uma conduta de água e outras peças esculpidas (lapidário).

Tecto quase plano do coro alto, muito interessante. Uma abóbada plana construída em granito. 

Formidável. Vale a visita. 

*****

Diário de viagem -  peregrinação pela Galiza à descoberta de terras medievais e dos seus mosteiros. 


Capela Mor
Exterior
Um dos claustros
Cúpula
Sala capitular
Coro alto
Abóbada quase plana.



22 setembro, 2021

PAINEL DECORATIVO 1,60x0,60

 


SER PROFESSOR

 

Ser professor


              Algumas profissões têm a sua origem na Antiguidade, é sempre bom estimar esses “pergaminhos”, mas a acção de ensinar, nasceu antes da Antiguidade; ainda não havia História e já se ensinava. A oralidade funcionava como canal didáctico, passando informação aos aprendentes primitivos, sobre algo que se considerava importante. A transformação da informação em conhecimento baseava-se frequentemente no instinto de preservar a vida por parte do aprendente e a sua vontade de se relacionar com o mundo – como fazer fogo, como safar-se de um mamute em fúria, como caçar, como atravessar o rio...  

              Mais tarde, no Antigo Egipto surgem as pessoas já especializadas em ensinar. Em Esparta a educação (já mudei de palavra) iniciava-se aos sete anos, já com uma estrutura de aprendizagem, com o objectivo de preparar meninos saudáveis e transformá-los em jovens guerreiros e, meninas capazes de gerar crianças saudáveis. Aparece a figura de tutor sem ganhar nada. Os atenienses um pouco mais preocupados com o equilíbrio entre o corpo e a mente, já estavam num patamar organizacional mais elevado, considerando o tutor professor, uma profissão remunerada, que se dividia da seguinte forma: os páidotribés, que cuidavam do desenvolvimento intelectual; os grammatistés, responsáveis pela leitura e a escrita; e os kitharistés, que se ligavam ao desenvolvimento físico.

              Na Roma Antiga poderíamos evocar os especialistas em retórica e os lud magister. No início da Idade média o ensino é remetido quase exclusivamente para as instituições religiosas e depois surgem as primeiras universidades.

              Registo aqui a minha homenagem ao nosso rei D. Dinis, que tendo uma visão consciente do núcleo cultural português, e a rede de ligações com a Igreja, sentiu a necessidade de se repensar conceitos relacionados com o pensamento e a cultura, com consequência no rumo social, político e económico do nosso país e fundou a primeira universidade portuguesa, exterior às ordens religiosas e capaz de sustentar a renovação do pensamento português.  D. Dinis incentivou as escolas, valorizou a ciência e tinha consciência da necessidade de romper com os princípios ultrapassados da Igreja, obviamente reforçando o seu poder como rei.

              Evoquei o D. Dinis para referir que o ensino e a educação são eixos estruturantes em todas as sociedades.

              Quem sabe mais, é mais capaz de resolver problemas e contribuir para a evolução da sociedade. O professor é a principal peça desta dinâmica de ensinar e aprender. No Japão, o professor é a única profissão que não tem que se dobrar perante o Imperador, porque a consideram a profissão mais nobre de todas. Por aqui, o professor para além de ganhar mal, ter vida nómada e dever estar sempre com o conhecimento actualizado, confronta-se diariamente com as inúmeras falhas da educação familiar dos seus alunos, que empobrecem a sua acção na Escola, é alvo de muitas criticas infundadas e injustas sobre a sua acção, perpetuadas pelos pais dos aprendentes, possui uma tutela que passa a vida a reformar o que já está reformado (como se vivêssemos num tempo, com pensadores capazes de inventar teorias pedagógicas todos os anos), saturando a acção do professor com constantes burocracias, relatórios e planos que ninguém lê, distraindo-o da sua principal função que é ser agente do processo de ensino-aprendizagem.

              Quero aqui elogiar a paciência e a resiliência dos professores, que pensam mais nos aprendentes do que neles próprios, evitando conflitos com estes e as suas famílias, digerindo com dificuldade progressiva, a má educação e ameaças de que é alvo, minimizando as suas lutas laborais, aceitando a sua progressão lenta, quase estática da sua carreira, carregando congelamentos nunca descongelados, aceitando por vezes más condições de trabalho e a prepotência de alguns directores,  ignorando as injúrias, de uma parte da sociedade, dirigidas a toda a classe profissional (por um mau professor, pagam todos) e tolerando os “achismos” pedagógicos que abundam na nossa sociedade, por parte daqueles que desconhecem o valor do processo educativo e se demitem da sua função de pais educadores.

              Como sabemos a educação tem múltiplas vertentes e agentes educativos, onde a família representa um núcleo muito importante. Como se educa um filho, se estacionam em sítio errado em frente à escola, se passam no sinal vermelho, se utilizam asneiras na sua comunicação oral, se criticam o professor, se não colocam o lixo no sítio certo, se premeiam o seu filho por tudo e por nada, se nunca se sentaram com ele a ler uma história e a explicar-lhe porque existem os maus e os bons... se não lhes exigem respeito pela hierarquia familiar? Expliquem-lhes que os professores são pagos para lhes ensinar e se os aprendentes não se empenharem, não usufruem da ida à Escola. Expliquem-lhes que aprender exige esforço e respeito. Cuide das horas de sono do seu filho, porém, não o obrigue a ir para a cama, com os pais a ver televisão ou a jogar no computador – os exemplos estão sempre em casa. Sobretudo, pense que a Escola não é um armazém de crianças.

              No início de um novo ano lectivo, desejo sucesso a todos os professores e lembro que têm um enorme poder nas suas mãos - um professor pode ser um influenciador. Acreditem no que fazem e accionem esta competência porque assim poderão mudar o mundo, sem receios. O professor pode orientar, sugerir, demonstrar, influenciar de forma positiva para que os seus aprendentes sejam informados, activos, críticos e capazes de resolver problemas.

              Nunca esqueçam de uma pitada de humor.

              Plantem o pensamento crítico na mente das criancinhas, a responsabilidade, a sociabilidade, a organização e a liberdade estruturada, conjugando o respeito por si e pelo outro. Quando a sociedade perceber esta dinâmica talvez respeitem mais o professor e favoreçam as suas sinergias.

Publicado em NVR, 22/09/2021

15 setembro, 2021

ELEIÇÕES À VISTA

 

Eleições à vista

            Eleição é um processo de escolha de alguém ou entidade, para ocupar um cargo, auscultando a vontade de todos. Na organização das sociedades, desde que o homem optou pela vida sedentária tornou-se necessário escolher os mais fortes e mais capazes para desempenharem certas funções e que representassem a comunidade.

            A nossa sociedade está organizada assim e parece-me bem. A democracia caracteriza-se exactamente pelas bases poderem eleger os seus governantes através do voto. A eleição parece ser o ponto-alto de qualquer democracia.

            O voto quer dizer que a nossa sociedade, apesar dos conflitos, dos erros e da corrupção, continua a permitir que cada cidadão tenha uma posição activa e avaliativa, que se traduz no acto eleitoral.

            É importante termos vários partidos para podermos escolher uma das equipas. Eleições com partido único, como era no tempo do “antigamente”, são estranhas e monótonas porque já sabemos quem irá ganhar. Não é possível haver surpresas e muito menos mudar.

            Já assisti a muitas campanhas eleitorais e estou sempre atenta às técnicas do marketing utilizadas na publicidade de cada partido, onde tudo é importante. Sobre a imagem do candidato, todos querem apresentar com rosto saudável, todos querem parecer ter à volta de 40/50 anos, simpáticos, que transmitam confiança, responsabilidade, inteligência e maturidade. Ninguém quer parecer um chato, desmazelado e com mau hálito. O fatinho e a gravata foram substituídos pela camisa simples de colarinho aberto. Antes, posar sem gravata, conotava-se a bandalhice, agora pode significar que o candidato é homem activo que põe as mãos na massa. Os modelos e padrões alteraram-se. A cor do fundo dos cartazes, este ano domina o verde. É também importante a simbologia das cores, verde simboliza esperança. As cores próprias de cada partido foram-se diluindo no sentido de captar melhor algumas franjas de eleitorado pouco informadas. O texto deve ser curto, criativo e marcante. As pessoas têm preguiça de ler. Fica difícil arranjar texto criativo depois de tantas campanhas eleitorais. Alguns textos podem ser alvo de piadas, de brejeirice que pode ensombrar a campanha eleitoral – há muitos tesourinhos deprimentes por este país fora.

            Todos sabem que não sou filiada em nenhum partido e apesar de muitas e variadas vezes não saber o que quero, sei sempre o que não quero. Por vezes sou irónica... o humor permite-me digerir melhor os “sapos” da vida. Sempre tive esta opção de saber o que não quero e até creio que Woody Allen deve-me ter lido em algum lugar (brincadeira).  Talvez tenha sido Friedrich Nietzsche quem inventou “Eu não sei o que quero ser, mas sei muito bem o que não me quero tornar.”

            Saber o que não se quer, significa que conhecemos o nosso interior, os nossos labirintos mais profundos e rejeitamos tudo aquilo que contraria a nossa natureza; permite-nos logo à partida em qualquer situação, eliminar uma parte dos cenários que se nos apresentam, em que a maturidade nos dá a certeza que nem vale a pena discutir, e em simultâneo confere-nos uma grande abertura para o futuro, a inovação e a mudança.

            Na política, profissionalmente e no meu mundo afectivo sei o que não quero. Não sou daquelas pessoas que dizem que não lhes interessa a política. Sou política, preservo o meu sentido crítico e agrada-me votar. Se não votar sinto-me incapaz de criticar. Nestas eleições autárquicas, irei votar como sempre fiz. Na minha cabeça mistura-se o conhecimento, as minhas opções e sonhos e quando já estou baralhada acciono o botão da emergência, que se chama ideologia. A ideologia funciona como algo que permite aferir situações, quando os discursos e as práticas são confusos e contraditórios. O desgaste político, a manipulação dos media, por vezes torna necessário, regressar à História das Ideologias, para nos sabermos reorientar. A ideologia é quase um “GPS” deste trilho cheio de obstáculos, armadilhas e demagogias. Ligo o meu “GPS” algumas vezes, porque no final, tem que prevalecer o humanismo. O humanismo é o meu partido político.

            Se forem contra o SNS, se forem indiferentes à violência doméstica, se criticarem a liberdade da mulher em abortar, se contrariarem a eutanásia argumentando ingenuamente com os cuidados paliativos,  se confundirem pobreza com falta de vontade de trabalhar, se apelarem ao lucro empresarial em detrimento de salários dignos, se apoiarem o radicalismo de não aceitar o nosso passado histórico, se forem homofóbicos, se tentarem criar teorias para branquear a corrupção, se não defenderem a escola pública e o direito à educação, quem fizer humor idiota sobre pedofilia e maus tratos, se não respeitarem os direitos humanos – eu estou sempre do outro lado.

Um, diz que Vila Real à frente

Outro, diz que vamos juntos

Outro diz que mudar está nas nossas mãos.

            - Credo, terei que votar com os cotovelos, sei lá!

Oublicado em NVR, 15/09/2021

11 setembro, 2021

UM MINUTO DE SILÊNCIO

 

Um minuto de silêncio

A primeira vez na vida que cumpri um minuto de silêncio foi por Salvador Allende, em 12 de Setembro de 1973.

Ainda não se adivinhava a revolução e o silêncio era um estado comum de sobrevivência, mas cumprir um minuto de silêncio, homenageando uma personalidade que deixou de existir neste mundo terreno, era uma postura desconhecida para mim. Ou a personalidade era importante e fazia-se luto nacional, com bandeira a meia haste ou era uma postura subversiva de impensável concretização.

Só vim a descobrir o seu verdadeiro significado anos mais tarde, pois eu, adolescente, nascida e criada neste país condicionado pela desinformação, nem sabia quem era Salvador Allende.

Viajava de comboio, entre as cidades do Porto e de Lisboa, ainda não havia comboios alfa, a CP apenas dispunha de foguetes e rápidos, o que para a época era um luxo, pois viajava-se confortavelmente e mais rápido do que de automóvel. Lembremo-nos que de Bragança a Lisboa eram nove horas de distância (parafraseando a letra de Xutos e Pontapés, Para ti Maria).

Era uma tarde quente de final de verão, e eu permanecia em pé, junto às janelas do corredor de acesso, a apanhar as lufadas de ar fresco, no meu rosto de adolescente. Tudo para mim era novidade e eu gostava de me armar à janela do comboio, com os meus cabelos ao vento, exibindo o meu equilíbrio e a minha


desenvoltura do saber estar à janela fingindo concentração na paisagem - coisas de adolescente de quem se imagina a desfilar, permanentemente, na passarela da vida.

Apercebi-me que o comboio desacelerou, entrou numa marcha cada vez mais lenta, até que se imobilizou no meio do Ribatejo – os campos de arroz eram a paisagem. Não percebi o que se passou. Pelo rosto dos passageiros, nem eles perceberam.

De repente, alguém entrou na carruagem onde viajava, deslocou-se rapidamente pelo corredor, cruzou- se comigo um jovem e passou-me para a mão um panfleto, onde se apelava para se fazer um minuto de silêncio em memória de Salvador Allende e explicando o golpe militar no Chile, tendo eu lido apenas as letras maiores.

Surpreendida, seguindo com o olhar aquela personagem que rapidamente desapareceu no final do corredor, senti a mão do meu pai, a puxar-me delicada- mente para dentro da cabine, correndo a porta de vidro.

Não foi preciso explicar nada a ninguém! Descodifiquei em segundos o olhar e a atitude do meu pai. Rapidamente, sentei-me e escondi o panfleto sob a minha almofada do assento.

Momentos mais tarde, tendo o comboio readquirido a sua marcha, dois indivíduos vestindo total- mente de preto, passavam revista ao comboio. Acercaram-se da nossa cabine, abriram a porta de correr e espreitaram.

Todos nós fingimos dormir.

in "O FATO QUE NUNCA VESTIMOS" - Anabela Quelhas

 

 


08 setembro, 2021

HERMITAGE, S. Petersburg


 Quero que saibas que vale a pena, vale muito a pena.

Estive no Hermitage. Estou sufocada por tanta beleza. Lamento não ter uma memória de elefante para conseguir registar todos os detalhes. Cheguei a um ponto que estava absolutamente esgotada. A máquina fotográfica irá permitir rever com calma em casa. A escadaria principal ainda é mais interessante do que aquilo que eu conhecia através de imagens. Todos os pormenores são delicados. A dimensão é gigantesca, as salas sucedem-se e parecem ter sido construídas há menos de um ano, aliás uma caracterisitca do património arquitectónico russo.  Os pavimentos de madeira, os tectos, pilares de tods as formas e feitios. Delicadeza, delicadeza... e sapiência, quase nem olhei para as pinturas do espólio do museu, porque isso para mim é menor. Fiquei completamente absorvida pelo edifício. Gastaria aqui à vontade vários meses apenas para apreciar e fruir cada pormenor. Deixaram-me entrar sem protecção nas sapatilhas. Vou dormir embalada em mármores, lacados dourados, cores de marfim, composição arquitectónica onde tudo bate certo... a escala é grandiosa, mas necessária para conter tanta narrativa construtiva e proporcionalidade. Muita, muita arte. Vale a pena vir até aqui e sentir que viver é bom perante este espectáculo estético.

Boa noite

Diário de viagem, 3 de Agosto 2016






01 setembro, 2021

A nova Avenida


 A nova avenida

              Todos os projectos urbanos estruturam-se em motivações políticas, históricas, sociais, económicas e só depois, vem a estética, a ética e a sustentabilidade. São sempre projectos de grande complexidade, pouco compreensíveis pelo comum dos mortais, já que estes julgam superficialmente agora reforçados com o “webachismo”. A geometria tenta dar forma às funções, às questões colocadas, às condicionantes, entendida como a matéria-prima do desenho arquitectónico e engloba sempre diversas opções que podem sensibilizar, mais uns do que outros, tentando solucionar os pontos fracos que existem. A arquitectura, felizmente, não é matemática, com produtos únicos. A arquitectura faz-se de muitas soluções, conforme a época e o autor, por isso é tão interessante, porque desperta em nós avaliações e juízos de valor, diversos.

              A avaliação de um projecto urbano deve fazer-se conhecendo os antecedentes, pontos fracos e fortes, e os objectivos a atingir, para depois se atribuir valor ao que se realizou e avaliar. Se o projecto atingiu os objectivos será um sucesso, se não atingiu, será um mau projeto. Esta é a forma linear de reflectir, mas nem sempre a vida é linear e aquilo que se pensa hoje, talvez não se pense amanhã, sem que a mudança tenha que ser desconfortável ou contrariada.

              Na execução da obra e no confronto com a opinião pública, apela-se ao onírico, ao sonho, à filosofia estética, às teorias mais ou menos românticas e imaginadas, algumas absurdas e bizarras, para conquistar os mais cépticos, também pelo coração. Às vezes funciona, outras não. Acreditar que D. Sebastião regressará numa manhã de nevoeiro, acciona a nossa esperança e optimismo, Não resolve os nossos problemas, mas faz-nos bem. Sobre a nossa avenida já ouvi tanta coisa digna de uma fotonovela, que até resolvi esquecer. Por favor, digam a verdade e expliquem com clareza aquilo que não tem sensibilizado pela positiva a opinião pública.

              A avenida Carvalho Araújo já tinha sido intervencionada, pela Câmara PSD, tendo decepado a mesma, portanto não fazia sentido o PS manter um resto de jardim moribundo, só porque sim, subjugando-se a uma avenida em ruínas. Já escrevi sobre isso.

              Sobre o projecto actual, completamente minimalista, com forma contemporânea, todos fazem a analogia com a Avenida dos Aliados de Siza Vieira, também polémica, também minimal, também “clean” e árida, mas que encontra algum sentido na festa de S. João, em grandes eventos públicos e nas grandes manifs.

              Hoje na mente dos cidadãos fica difícil a transição de um jardim arrumadinho, simétrico entre si, cheio de florzinhas organizadas, mais para ornamentação do que para ser vivenciado, para um novo desenho contemporâneo, em que será mais importante a vivência, do que a forma. Anteriormente o que terão pensado os vila-realenses quando lhe retiraram o seu terreiro junto à Sé e criaram um jardim muito bonitinho e arrumadinho, que não permitia a permanência das pessoas? Tentando não manifestar muito a minha concordância ou repúdio, leio assim esta intervenção:

1 – A tentativa para conquistar espaços para peões no centro urbano, está politicamente alinhada com a Europa e com os problemas ambientais que são de todos nós. Esta estratégia repete-se em diversas cidades europeias criando soluções que dificultam ou reduzem a circulação automóvel. É urgente reabilitar os centros urbanos e dar espaço que favoreça a residência e o lazer das pessoas. O lugar atrás da adufa, terminou há muito e o comércio tradicional colapsou, desde que as grandes superfícies se instalaram no território.

 2 – O desenho urbano da avenida abandona a simetria, porque os edifícios de topo não podem propor qualquer alinhamento, dado que ele nunca existiu. Puxou-se a circulação automóvel para o lado dos equipamentos – Hospital, Sé, Conservatório e CTT – beneficiou-se o lado dos cafés (saiu-lhes a sorte grande) com mais espaço. Este espaço pedonal não tem que ter passadeiras, porque o trânsito deve ser condicionado, portanto, a prioridade será sempre dos peões. Agrade ou não, é assim. Esta avenida deixou de ser zona de passagem e tenta ser zona de permanência. Veremos se resulta.

3 – A construção da barreira criada entre o edifício que simboliza o poder judicial e o resto da avenida, é o calcanhar de Aquiles desta avenida renovada. Refiro-me obviamente à antiga praça Luís de Camões. Se estivéssemos no tempo da outra ”senhora”, esta seria uma barreira conseguida, porém incoerente e frágil, porque a geometria parece pretender unir, com a eliminação da rua, mas em simultâneo separa. Há aqui algo que falha profundamente e os cidadãos perceberam logo isso, mesmo que não consigam teorizar.  A implantação do tribunal em cota alta já confere a este edifício a dignidade que se pretende para a instituição, reforçada pela sua escadaria com visão sobre a avenida. Os arquitectos do Estado Novo dominavam estes elementos muito bem e até de forma bela e harmoniosa. Aqui não se soube filtrar a memória e os elementos da história, traduzindo esta amálgama urbana num design criativo, em vez da reinvenção abusiva, com a intrusão de um muro. Segundo Aldo Rossi, a cidade deve reinventar-se para que os cidadãos vivam melhor, dentro de um contexto de dinâmica urbana equilibrada com a política como escolha. Espaços fluídos permitem dinâmicas variadas tão próprias das exigências do Homem do século XXI e será esse o segredo para aquisição de valor, que construirá identidade e memória colectiva do presente. Temos aqui uma boa proposta funcional e uma desagradável solução formal. O que correu mal? O anfiteatro é certamente um elemento positivo, mas ninguém gosta do muro, tendo sido já apelidado com nomes indignos. A ideia de um todo e de continuidade urbana, falha aqui completamente.

4 - Compare-se a foto virtual resultante do projeto, apresentada em sessão pública (1) pelo autor do projecto e a realidade (2) - eu diria que não bate a letra com a careta. O que é que se passou? Os vila-realenses sentem-se enganados porque não foi isto que lhes mostraram na simulação que consta na foto virtual. Isto é mau, por mais teorias que inventem. Fazem-se comparações com a Avenida dos Aliados no Porto, porém, aquele "laguinho, espelho de água, charquinho para murcões” ou o que lhe quiserem chamar, implanta-se numa cota inferior ao piso da avenida, o que o converte numa “volumetria negativa”, não confrontando nada, nem ninguém. Aqui falha isso, bastaria seguir o exemplo, ou seja, tomar atenção às cotas da morfologia, para que a volumetria não se transformasse em barreira abusiva e em impacto desagradável. Para o arquiteto, o muro “é um valor” que esconde “um segredo” do anfiteatro ao ar livre e cria uma espécie de varanda com vista sobre a avenida.[1] Uma varanda deve ter uma personalidade biunívoca, ter vista agradável e ser agradável à vista... esta não é, é uma experiência sensorial desagradável.

5 – Sobre a reposição do fontanário da aguadeira, que agora até foi promovida abusivamente a Maria da Fonte, a mudança de localização retoma a posição original e o enquadramento não arborizado, assume a forma de terreiro tal como existia antigamente.

6 - O “rego” ou “canal” de água, nem sei como o deva denominar e apreciar, parece-me invulgar, porém, ridículo, inicialmente pensava que seria uma linha de vapor para os dias de verão, mas enganei-me, nem isso, tem pontualmente alguns repuxos, que ainda não vi em funcionamento. Será a linha de água que se transforma em repuxos mais abaixo? Constituirá a referência à conduta de água que antigamente abasteceria o fontanário do Tabulado? Muitos se interrogam se a água é reaproveitada ou não. Expliquem por favor.

7 – O banco contínuo sugere a fila de espera da carreira, sem encosto, no alinhamento do canal - pormenores menores, onde não foco a minha atenção, deixo para a imaginação popular. Ter muito espaço para sentar é o que interessa.

8 – A substituição da calçada portuguesa que integra o nosso património imaterial, por placas de granito, empobrece a cidade, dizem os cidadãos.

9 – Mais pessoas e menos carros: objectivo conseguido. A circulação condicionada de veículos, que incomoda a maioria dos cidadãos, valida a política que se adoptou para esta cidade, ainda um pouco desajustada, mas com uma filosofia de base difícil de contrariar - a valorização das zonas pedonais, mesmo que nem sempre existam peões, dificuldades crescentes à circulação automóvel implicando o aumento das filas no trânsito. Este é o paradigma que resulta da reflexão sobre as grandes mudanças urbanas no sentido de minimizar os problemas ambientais. Queiramos ou não, isto anda tudo ligado e soluções geniais ainda não há, mas certamente terão de ser melhoradas as soluções actuais.

10 – Faltam árvores. Estas dificultam a organização espacial de grandes eventos, mas reduzem o impacto solar e beneficiariam a utilização diurna.

              Acabem lá com a escaramuça política em que esta situação se tornou, que será aproveitada na campanha eleitoral. Não tenho dúvidas que os vila-realenses invadirão a avenida, criticando ou não, porque estão sequiosos, de grandes espaços, de convívio e de cultura, e o espaço está lá. São necessárias mais árvores. É preciso mais estacionamento, sim. É preciso melhorar os transportes públicos, também. É preciso corrigir situações ao longo da cidade, evidentemente. Evidenciar os elementos históricos, repor situações e beneficiar as pessoas, parece-me legítimo e bom. Aparentemente a avenida parece fraccionada em 5 partes, é necessário explicar o seu fio condutor, a sua teoria de suporte e corrigir o que foi menos conseguido (Praça Luís de Camões) – assim se reforçará a nossa identidade.

              A vida faz-se vivendo, em espaços em constante mudança, mas quando tudo é bem explicado, melhor se digere, é urgente apresentar-se ao público a evolução histórica desta avenida até porque estão em causa dois milhões de euros. Tragam as explicações ao espaço público, já agora, ao terreiro. A mudança nem sempre é fácil de entender e de assumir. A mudança gera sempre conflitos, temos essa experiência durante 350 mil anos e sempre a reclamar.
Publicado em NVR 02/09/2021

[1] https://greensavers.sapo.pt/principal-avenida-de-vila-real-tera-mais-pessoas-e-menos-carros-obras-serao-concluidas-em-agosto/