11 setembro, 2021

UM MINUTO DE SILÊNCIO

 

Um minuto de silêncio

A primeira vez na vida que cumpri um minuto de silêncio foi por Salvador Allende, em 12 de Setembro de 1973.

Ainda não se adivinhava a revolução e o silêncio era um estado comum de sobrevivência, mas cumprir um minuto de silêncio, homenageando uma personalidade que deixou de existir neste mundo terreno, era uma postura desconhecida para mim. Ou a personalidade era importante e fazia-se luto nacional, com bandeira a meia haste ou era uma postura subversiva de impensável concretização.

Só vim a descobrir o seu verdadeiro significado anos mais tarde, pois eu, adolescente, nascida e criada neste país condicionado pela desinformação, nem sabia quem era Salvador Allende.

Viajava de comboio, entre as cidades do Porto e de Lisboa, ainda não havia comboios alfa, a CP apenas dispunha de foguetes e rápidos, o que para a época era um luxo, pois viajava-se confortavelmente e mais rápido do que de automóvel. Lembremo-nos que de Bragança a Lisboa eram nove horas de distância (parafraseando a letra de Xutos e Pontapés, Para ti Maria).

Era uma tarde quente de final de verão, e eu permanecia em pé, junto às janelas do corredor de acesso, a apanhar as lufadas de ar fresco, no meu rosto de adolescente. Tudo para mim era novidade e eu gostava de me armar à janela do comboio, com os meus cabelos ao vento, exibindo o meu equilíbrio e a minha


desenvoltura do saber estar à janela fingindo concentração na paisagem - coisas de adolescente de quem se imagina a desfilar, permanentemente, na passarela da vida.

Apercebi-me que o comboio desacelerou, entrou numa marcha cada vez mais lenta, até que se imobilizou no meio do Ribatejo – os campos de arroz eram a paisagem. Não percebi o que se passou. Pelo rosto dos passageiros, nem eles perceberam.

De repente, alguém entrou na carruagem onde viajava, deslocou-se rapidamente pelo corredor, cruzou- se comigo um jovem e passou-me para a mão um panfleto, onde se apelava para se fazer um minuto de silêncio em memória de Salvador Allende e explicando o golpe militar no Chile, tendo eu lido apenas as letras maiores.

Surpreendida, seguindo com o olhar aquela personagem que rapidamente desapareceu no final do corredor, senti a mão do meu pai, a puxar-me delicada- mente para dentro da cabine, correndo a porta de vidro.

Não foi preciso explicar nada a ninguém! Descodifiquei em segundos o olhar e a atitude do meu pai. Rapidamente, sentei-me e escondi o panfleto sob a minha almofada do assento.

Momentos mais tarde, tendo o comboio readquirido a sua marcha, dois indivíduos vestindo total- mente de preto, passavam revista ao comboio. Acercaram-se da nossa cabine, abriram a porta de correr e espreitaram.

Todos nós fingimos dormir.

in "O FATO QUE NUNCA VESTIMOS" - Anabela Quelhas

 

 


1 comentário:

Carlos Té disse...

Onde estaria eu nesse dia?