30 abril, 2013

Cheguei do liceu

Cheguei do liceu. A mesa está posta, tem churrasco do bar América, acompanhado com aquelas batatas fritas deliciosas, em cima da mesa me esperando. Já todos almoçaram, pois as aulas ao sábado terminam à mesma hora que de durante a semana. Não interessa se é sábado ou não, as aulas são sempre no mesmo horário, não adianta nem discutir, nem xingar, nem apresentar razões… é assim porque é e pronto! Sorte a minha ter aulas de manhã. As aulas terminaram e eu saí correndo, saltando as escadas duas a duas, em saltos ensaiados tanta vez, vestindo bata branca de emblema azul LGL e calções, correndo em direção do portão do liceu feminino, apressada e olhando o relógio. Nem olhei quem esperava quem, quem se atrasava a vir buscar, quem catrapiscava como… quem passava na três e meio fazendo banga, quem parava no descapotável…NADA! Xêêê sai correndo e apressando o passo até chegar na Combatentes, vários cruzamentos depois, vários bares de seguida, atravessando finalmente na passadeira do café Mónaco em direcção à loja Paris. Luanda toda já se prepara para sair da mesa e atirar-se para a sesta no fresco de uma varanda, ou na direcção de uma ventoinha obediente, pretendendo jiboiar sem ninguém por perto para xingar. Luanda quer xonar a sesta tropical como a preguiça e a digestão exigem. Um sofá sabe bem, mas uma cadeira de tirinhas de plástico sabe bem melhor, arejada e fresca. O churrasco me espera ainda morno devido aos cuidados da minha mãe, mas ainda vou tomar um duche rápido, para depois me apressar, pois os amigos esperam. Combinação do dia anterior, ir no cinema Estúdio na primeira matiné da tarde ver Jean-Louis Trintignant - bilhetes já comprados para não haver surpresas em coisa combinada e recombinada por todos. O filme nem sei qual é. É um qualquer que seja, o que interessa é ir. Está na moda esse Tritignant filmado em francês, o que para nós é uma cena nice, dando-nos uma certa intelectualidade na cabeça, dando-nos a ilusão que nos tornará adultos logo à saída da matiné. Entramos adolescentes de 14, mas saímos com mentalidade de 20 anos no mínimo. O filme é para maiores de 18, mas nós achamos que aparentamos ter… já passamos noutros sítios, basta entrar sério e com ar de responsável,…. aliás na saída já teremos ultrapassado largamente essa idade de 18. Sabemos que filmes franceses são mais invulgares e só por isso já gostamos, e já nos sentimos alguns degraus acima da estupidez da adolescência que não acaba nunca, para poder ir merengar toda a noite e passar fi ns de semana no Mussúlo, como os mais velhos fazem e contam. O cinema Estúdio, cheira-nos a sala europeia. Pouco arejada, pequena, metida dentro do Restauração, sem jardins, sem ar livre, mas se tem na Europa deve ser bom aqui também, e nós vamos ver o Trintignant, o policial, o actor sério cheio de personalidade, que fala com os erres todos. Não é um borracho, mas não é mau de todo. Me sento à mesa de cabelo molhado, vestida, perfumada e fresca. Lá finesse preta e camisa aos quadradinhos azuis bem cintada, sandália de pneu, anéis e pulseiras quebê e coloco o meu sorriso de feliz dum sábado de tarde, com os amigos à espera e os especiais também e ataco a coxa do churrasco, pois que o fastio se esqueceu de mim lá no final da infância. Ataco de mão no osso como é bom comer e só assim sabe bem, sem a etiqueta de alguns cotas, rodando o pernil, crocanteando as batatas e pingando gindungo de quando em vez. Sleppp! Coisa deliciosa de boa, acompanhada de uma coca cola. Manga para terminar, daquelas de muitos fios, sabor de resina e cheiro doce, não há que enganar, daquelas que de seguida exigem uma escovagem meticulosa dos dentes. Desço o elevador, depois de ter dado um cuidado às pestanas, e lá vou eu encontrar os amigos junto à Bonzão, carregando o meu ar de Joplin escondido atrás de uns óculos com 10cm de diâmetro, degradê não vá o sol estragar a pestana… ehehehh. In “Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado” Anabela Quelhas

22 abril, 2013

Como diz MEC ”a vida sempre termina mal”.
Tento viver como se fosse a ultima vez, porque de facto, a vida mais dia menos dia termina mesmo mal, porque ela termina sempre mal. Esta é uma das verdades irrefutáveis. Neste intervalo de tempo em que a vivo, melhor ou pior, tento vive-la com sabor, tento apreciar cada minuto, cada gesto, cada situação, pois no minuto seguinte poderei não ter mais.
Isto não converte a minha vida em algo catastroficamente paranoico.
Não.
A vida converte-se em algo delicioso, porque pânico por tudo e por nada, porque me emociono , porque vivo o antes, o durante e o depois. Memorizo cada detalhe para recordar depois e assim tenho a sensação que vivo, não uma vez mas duas vezes. Se antecipo o que vou viver, vivo 3 vezes. Tento não adiar para amanhã, o que posso viver hoje, porque hoje tem o sabor de hoje e amanha poderá ter o saber indefinido ou indeterminado, ou a tender para o infinito ou simplesmente não ter sabor. Invisto na vida, não me limito a vive-la, tempero-a a meu gosto. Analiso-a, disseco-a, seleccino aquilo que de fato mais me interessa adiciono-lhe alguns pormenores que me estão próximos ou não, mas podem fazer a diferença, e delicio-me.
Por vezes são pormenores mínimos, naturais, vulgares, que se localizam perto de mim, outras vezes é necessário procura-los, descobri-los e inventá-los, por vezes são dissociados do que estou a viver, mas juntando-os dão cor à vivência, valorizando-a. Por analoogia é a diferença entre andar e dançar, entre falar e sussurrar, entre olhar e observar, alumiar e iluminar, entre tocar e sentir….


In “Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado” Anabela Quelhas


19 abril, 2013

O tempo

“O relógio, da parede, do pulso, o digital do computador e do telemóvel… Não pára… com tic, tic, ou sem tic tac, o tempo acontece. Por vezes parece-nos ilógico, outras parece-nos hiperactivo, nessa ansia egocêntrica de deslocar os ponteiros sempre no mesmo sentido.
Faz-nos contar os dias e os anos, faz-nos olhar ao espelho repetidas vezes.
Pensem: porque nos olhamos ao espelho todos os dias?
Já sabemos que somos nós os reflectidos a uns centímetros de distância. Mas irreflectidamente olhamos, num gesto narcisista do olhar. Porque o fazemos todos os dias? nós insistimos… olhamos o espelho como se fosse a primeira vez, como se fossemos encontrar o George Cloony, ou o Indiana a convidar-nos para o pequeno almoço! Sabemos que nunca será assim, mas nós insistimos teimosamente. Depois tomamos consciência que afinal olhamos o espelho para ver o tempo que se concretiza em mais uma ruga, em mais um olhar ensonado e triste. Penso que o tempo nos espreita também, disfarçado de coisa nenhuma lá do outro lado do espelho, e deve achar-nos mentecaptos, por todas as manhãs e ao longo do dia, e da vida, debruçarmo-nos sobre o espelho, para ver sempre a mesma catástrofe.
Certos dias olho o espelho de viés, para não lhe dar grande confiança, e ele permanece lá impávido e sereno, fazendo-se de morto, mas eu sei que ele está atento.
Prefiro o tempo contado com a projeção do sol. Em vez de contar as rugas, centro a atenção nos erros de paralaxe, imaginando eixos que possam configurar novos horizontes e que me presenteiem com novas perspetivas da força da gravidade, que tanto amo e que tanto odeio. “
In “Ensaios de escrita, um projeto sempre adiado”. Anabela Quelhas