28 junho, 2015

Entardecendo com Berlim


Entardecendo com Berlim

                Talvez fosse o último país para eu visitar. O preconceito de visitar um território feito de histórias complicadas e de difícil digestão, onde o nazismo vingou por um período de tempo, agredindo o mundo e a humanidade e pondo de luto a história do século XX, possuía-me desde sempre. Os alemães não são todos iguais, passou mais de um lustre de história, eu sei, mas Hitler falava às massas, com os seus discursos inflamados e as massas estavam lá para o ouvir, para o aplaudir e para o seguir. Isso é inegável.

                Sabemos que Hitler tinha consigo o génio da época da propaganda dos ideais, Joseph Goebbels defendendo que, uma “Uma mentira contada mil vezes, torna-se uma verdade”, aglutinando multidões e alucinando coletivamente milhares de jovens em torno do nazismo e do seu Führer,… mesmo assim eles estavam lá, aplaudiam e deixavam-se seduzir. E não eram poucos e não desapareceram com o final da 2ª guerra. As imagens do ditador, fazem parte da minha formação cinéfila, tal como a de muitas gerações pós-guerra e moldaram o  meu desejo de conhecer o mundo sempre orientado para outras paragens. Era como se no mapa da europa não existisse tal país.

                A oportunidade de visitar Berlim bateu de frente com este preconceito e foi-se diluindo durante a minha permanência, através da evidência da história da cidade dividida e da cidade reunificada, com os últimos 25 anos de arquitectura  contemporânea, o meu ópio para muitas dores. 

                E tudo superou as minhas expectativas.

                Berlim é uma cidade martirizada pela história, uma cidade de muitas histórias violentas, que parece ter renascido após 1990. Evoquei a transmissão em direto pelas televisões do mundo, do concerto memorável do grupo Pink Floid, tendo adaptado a música The Wall, concebida alguns anos antes para outras circunstâncias. Li em Berlim um esforço meritório para unir a cidade, transformando as fronteiras de duas cidades forçadas a virarem as costas durante a guerra fria, num centro de grande interesse a muitos níveis. Berlim não é uma cidade para turista ver, é uma cidade construída para os alemães, dando resposta sempre aos seus interesses de cidade martirizada, mas capaz de curar as suas feridas.

                Olhei ao longe a obra de Siza Vieira, Bonjour Tristesse, que me transportou para outras histórias de outros lugares, não menos tristes e sem qualquer anúncio de um dia bom. Visitei o memorial do Holocausto, projeto de Eisenman, que consta de uma escultura gigante feita de blocos que, em planta, são todos rectângulos cujas dimensões me evocam sepulturas implantadas ordenadamente, mas cuja volumetria causa sensações de labirinto, de desconforto, de confusão,… Visitei também Daniel Libeskind… e o resto foi a festa da arquitectura, vidro e vidro, aço e vidro, transparências e reflexos, rua sim, rua sim, praça sim praça sim.

                Num sábado ao fim do dia, sentei-me olhando as pessoas aproveitando os últimos raios solares, deitadas pacificamente na relva da praça da catedral, no chão onde Hitler proferiu um dos seus discursos mais exuberantes da história, Lustgarten. Peguei no telemóvel e escrevi:

“19h43m num cruzamento de várias realidades e sensibilidades, com a história - um relvado, uma fonte, um rio, uma música clássica voando em sintonia com a brisa semi-nocturna, o museu de artes como cenário de lusco-fusco a catedral à sua direita. Relaxamento de pessoas que parecem pacíficas, numa urbanidade multicultural e multicolor, que pretende sossegar consciências, através do seu desenho urbano planeado, numa epopeia de raios laranja dum pôr-de-sol germânico. Talvez nunca mais estejamos comungantes deste espaço, talvez este seja um momento único na vida de todos, numa letargia de cansaço provocado por muitos e muitos quilómetros a percorrer e a conhecer esta Berlim feita de tudos e de nadas. Talvez não nos encontremos jamais, mas estamos aqui hoje, neste relvado simbólico, entardecendo com Berlim. Um frontão grego e colunas dóricas a dialogar com capitéis coríntios, afirmando modelos provenientes da Grécia antiga, grande berço da arquitectura, da filosofia e da democracia, permanente do orgulho dos conceitos de humanismo do ocidente, que afinal, não sei se todos teremos. O sol põe-se, vai iluminar outras urbanidades do mundo e para onde vai cada um de nós?” 
Publicado em NVR

06 junho, 2015

GÉNESIS


GÉNESIS

            Já vou na terceira oportunidade de apreciar ao vivo e a preto e branco, fotografias da autoria de Sebastião Salgado. Desta vez foi na Cordoaria em Lisboa.

            É uma gigantesca exposição, com 245 fotografias de grande formato, que já foi vista por cerca de 2 milhões de pessoas desde 2013, em vários pontos do mundo. Está organizada em 5 partes, “ Amazónia e Pantanal”, Espaços a Norte”, “Sul do Planeta”, “África” e “Santuários”.

            O grande tema “Génesis” (do grego Γένεσις, "origem", "nascimento", "criação") abre-nos janelas para a origem do planeta terra, tão mal estimado pelos nossos contemporâneos – uns porque pertencem a países desenvolvidos e industrializados, outros porque pertencem aos países em vias de desenvolvimento… mas, todos pecam.

            O seu autor referenciou-a como uma “história de amor ao planeta”, que expressa uma década do seu trabalho, mostrando-nos através do seu olhar, as situações mais primitivas que ainda hoje sobrevivem a este nosso mundo louco e idiota. Todas as fotografias formam um registo de grande valor, para nós que vivemos agora e para as gerações que se seguem, pois são um testemunho real dos recantos do mundo não explorados e não corrompidos pelo Homem civilizado, pelos seus negócios e pelo capital que tudo adultera. 

            Imagino que são fotografias obtidas em locais de difícil acesso, depois de dias e dias (meses?) cheios de privações, de obstáculos, de suor e de desânimo, que só uma grande determinação como a de Sebastião Salgado,  em partilhar connosco realidades tão distantes e tão estranhas, consegue transformar estas expedições tão singulares, em sucesso.

            Percorri a exposição de forma desorganizada, como tenho o hábito de fazer, devido a uma certa impaciência em percorrer o caminho dos outros. Permaneci mais tempo, vendo e revendo as fotografias de África, pois é por ali que mais me identifico. Colhi fotografias de fotografias, para poder rever e escrever sobre elas.

            A minha fotografia preferida foi obtida no sul Sudão, em 2006. Foca um acampamento de gado em Amak, com múltiplas transparências de cinzentos, resultantes de diversas fumaças que se destinam a afugentar insectos. Bovinos magros de grandes armaduras, com ar pacífico, entremeados com os seus guardadores que controlam e cuidam da manada, aliviando todo o acampamento de insectos que martirizam todos, a certas horas do dia e da noite. È um belo registo fotográfico e esta é a foto talvez mais popular.

            Mas há outras que mereceram a minha atenção. A investida do elefante que chama à atenção para a dizimação dos elefantes que alimentam o negócio ilícito do marfim (Zâmbia), as mulheres da tribo Mursi e Surma, últimas do mundo a usar discos nos lábios (Etiópia)…

            Todas as fotografias têm uma mensagem implícita, induzindo-nos para a preservação do planeta azul, assinada por este grande fotógrafo ambiental, acrescida de várias histórias paralelas que cada visitante poderá imaginar sobre, toda a equipa que apoiou o fotógrafo, tornando possível segundos de cliques invulgares em sítios recônditos do planeta, onde não passa o comboio, não há aeroportos, não existem navios, e os jeeps ficam a muitos quilómetros de distância, justificando-se verdadeiras peripécias, que são deduzíveis e circunstanciadas pelo raciocínio de cada um.

            Não vos maço com mais descrições. Não percam, a exposição estará em Lisboa até Agosto. Preparem-se para a fila a certas horas. Esta é a exposição que deveria por o mundo a pensar.

Podem consultar:

http://www.terraesplendida.com/genesis/ TE_GENESIS_INFO_CM-JF.pdf
Publicado em NVR