01 setembro, 2021

A nova Avenida


 A nova avenida

              Todos os projectos urbanos estruturam-se em motivações políticas, históricas, sociais, económicas e só depois, vem a estética, a ética e a sustentabilidade. São sempre projectos de grande complexidade, pouco compreensíveis pelo comum dos mortais, já que estes julgam superficialmente agora reforçados com o “webachismo”. A geometria tenta dar forma às funções, às questões colocadas, às condicionantes, entendida como a matéria-prima do desenho arquitectónico e engloba sempre diversas opções que podem sensibilizar, mais uns do que outros, tentando solucionar os pontos fracos que existem. A arquitectura, felizmente, não é matemática, com produtos únicos. A arquitectura faz-se de muitas soluções, conforme a época e o autor, por isso é tão interessante, porque desperta em nós avaliações e juízos de valor, diversos.

              A avaliação de um projecto urbano deve fazer-se conhecendo os antecedentes, pontos fracos e fortes, e os objectivos a atingir, para depois se atribuir valor ao que se realizou e avaliar. Se o projecto atingiu os objectivos será um sucesso, se não atingiu, será um mau projeto. Esta é a forma linear de reflectir, mas nem sempre a vida é linear e aquilo que se pensa hoje, talvez não se pense amanhã, sem que a mudança tenha que ser desconfortável ou contrariada.

              Na execução da obra e no confronto com a opinião pública, apela-se ao onírico, ao sonho, à filosofia estética, às teorias mais ou menos românticas e imaginadas, algumas absurdas e bizarras, para conquistar os mais cépticos, também pelo coração. Às vezes funciona, outras não. Acreditar que D. Sebastião regressará numa manhã de nevoeiro, acciona a nossa esperança e optimismo, Não resolve os nossos problemas, mas faz-nos bem. Sobre a nossa avenida já ouvi tanta coisa digna de uma fotonovela, que até resolvi esquecer. Por favor, digam a verdade e expliquem com clareza aquilo que não tem sensibilizado pela positiva a opinião pública.

              A avenida Carvalho Araújo já tinha sido intervencionada, pela Câmara PSD, tendo decepado a mesma, portanto não fazia sentido o PS manter um resto de jardim moribundo, só porque sim, subjugando-se a uma avenida em ruínas. Já escrevi sobre isso.

              Sobre o projecto actual, completamente minimalista, com forma contemporânea, todos fazem a analogia com a Avenida dos Aliados de Siza Vieira, também polémica, também minimal, também “clean” e árida, mas que encontra algum sentido na festa de S. João, em grandes eventos públicos e nas grandes manifs.

              Hoje na mente dos cidadãos fica difícil a transição de um jardim arrumadinho, simétrico entre si, cheio de florzinhas organizadas, mais para ornamentação do que para ser vivenciado, para um novo desenho contemporâneo, em que será mais importante a vivência, do que a forma. Anteriormente o que terão pensado os vila-realenses quando lhe retiraram o seu terreiro junto à Sé e criaram um jardim muito bonitinho e arrumadinho, que não permitia a permanência das pessoas? Tentando não manifestar muito a minha concordância ou repúdio, leio assim esta intervenção:

1 – A tentativa para conquistar espaços para peões no centro urbano, está politicamente alinhada com a Europa e com os problemas ambientais que são de todos nós. Esta estratégia repete-se em diversas cidades europeias criando soluções que dificultam ou reduzem a circulação automóvel. É urgente reabilitar os centros urbanos e dar espaço que favoreça a residência e o lazer das pessoas. O lugar atrás da adufa, terminou há muito e o comércio tradicional colapsou, desde que as grandes superfícies se instalaram no território.

 2 – O desenho urbano da avenida abandona a simetria, porque os edifícios de topo não podem propor qualquer alinhamento, dado que ele nunca existiu. Puxou-se a circulação automóvel para o lado dos equipamentos – Hospital, Sé, Conservatório e CTT – beneficiou-se o lado dos cafés (saiu-lhes a sorte grande) com mais espaço. Este espaço pedonal não tem que ter passadeiras, porque o trânsito deve ser condicionado, portanto, a prioridade será sempre dos peões. Agrade ou não, é assim. Esta avenida deixou de ser zona de passagem e tenta ser zona de permanência. Veremos se resulta.

3 – A construção da barreira criada entre o edifício que simboliza o poder judicial e o resto da avenida, é o calcanhar de Aquiles desta avenida renovada. Refiro-me obviamente à antiga praça Luís de Camões. Se estivéssemos no tempo da outra ”senhora”, esta seria uma barreira conseguida, porém incoerente e frágil, porque a geometria parece pretender unir, com a eliminação da rua, mas em simultâneo separa. Há aqui algo que falha profundamente e os cidadãos perceberam logo isso, mesmo que não consigam teorizar.  A implantação do tribunal em cota alta já confere a este edifício a dignidade que se pretende para a instituição, reforçada pela sua escadaria com visão sobre a avenida. Os arquitectos do Estado Novo dominavam estes elementos muito bem e até de forma bela e harmoniosa. Aqui não se soube filtrar a memória e os elementos da história, traduzindo esta amálgama urbana num design criativo, em vez da reinvenção abusiva, com a intrusão de um muro. Segundo Aldo Rossi, a cidade deve reinventar-se para que os cidadãos vivam melhor, dentro de um contexto de dinâmica urbana equilibrada com a política como escolha. Espaços fluídos permitem dinâmicas variadas tão próprias das exigências do Homem do século XXI e será esse o segredo para aquisição de valor, que construirá identidade e memória colectiva do presente. Temos aqui uma boa proposta funcional e uma desagradável solução formal. O que correu mal? O anfiteatro é certamente um elemento positivo, mas ninguém gosta do muro, tendo sido já apelidado com nomes indignos. A ideia de um todo e de continuidade urbana, falha aqui completamente.

4 - Compare-se a foto virtual resultante do projeto, apresentada em sessão pública (1) pelo autor do projecto e a realidade (2) - eu diria que não bate a letra com a careta. O que é que se passou? Os vila-realenses sentem-se enganados porque não foi isto que lhes mostraram na simulação que consta na foto virtual. Isto é mau, por mais teorias que inventem. Fazem-se comparações com a Avenida dos Aliados no Porto, porém, aquele "laguinho, espelho de água, charquinho para murcões” ou o que lhe quiserem chamar, implanta-se numa cota inferior ao piso da avenida, o que o converte numa “volumetria negativa”, não confrontando nada, nem ninguém. Aqui falha isso, bastaria seguir o exemplo, ou seja, tomar atenção às cotas da morfologia, para que a volumetria não se transformasse em barreira abusiva e em impacto desagradável. Para o arquiteto, o muro “é um valor” que esconde “um segredo” do anfiteatro ao ar livre e cria uma espécie de varanda com vista sobre a avenida.[1] Uma varanda deve ter uma personalidade biunívoca, ter vista agradável e ser agradável à vista... esta não é, é uma experiência sensorial desagradável.

5 – Sobre a reposição do fontanário da aguadeira, que agora até foi promovida abusivamente a Maria da Fonte, a mudança de localização retoma a posição original e o enquadramento não arborizado, assume a forma de terreiro tal como existia antigamente.

6 - O “rego” ou “canal” de água, nem sei como o deva denominar e apreciar, parece-me invulgar, porém, ridículo, inicialmente pensava que seria uma linha de vapor para os dias de verão, mas enganei-me, nem isso, tem pontualmente alguns repuxos, que ainda não vi em funcionamento. Será a linha de água que se transforma em repuxos mais abaixo? Constituirá a referência à conduta de água que antigamente abasteceria o fontanário do Tabulado? Muitos se interrogam se a água é reaproveitada ou não. Expliquem por favor.

7 – O banco contínuo sugere a fila de espera da carreira, sem encosto, no alinhamento do canal - pormenores menores, onde não foco a minha atenção, deixo para a imaginação popular. Ter muito espaço para sentar é o que interessa.

8 – A substituição da calçada portuguesa que integra o nosso património imaterial, por placas de granito, empobrece a cidade, dizem os cidadãos.

9 – Mais pessoas e menos carros: objectivo conseguido. A circulação condicionada de veículos, que incomoda a maioria dos cidadãos, valida a política que se adoptou para esta cidade, ainda um pouco desajustada, mas com uma filosofia de base difícil de contrariar - a valorização das zonas pedonais, mesmo que nem sempre existam peões, dificuldades crescentes à circulação automóvel implicando o aumento das filas no trânsito. Este é o paradigma que resulta da reflexão sobre as grandes mudanças urbanas no sentido de minimizar os problemas ambientais. Queiramos ou não, isto anda tudo ligado e soluções geniais ainda não há, mas certamente terão de ser melhoradas as soluções actuais.

10 – Faltam árvores. Estas dificultam a organização espacial de grandes eventos, mas reduzem o impacto solar e beneficiariam a utilização diurna.

              Acabem lá com a escaramuça política em que esta situação se tornou, que será aproveitada na campanha eleitoral. Não tenho dúvidas que os vila-realenses invadirão a avenida, criticando ou não, porque estão sequiosos, de grandes espaços, de convívio e de cultura, e o espaço está lá. São necessárias mais árvores. É preciso mais estacionamento, sim. É preciso melhorar os transportes públicos, também. É preciso corrigir situações ao longo da cidade, evidentemente. Evidenciar os elementos históricos, repor situações e beneficiar as pessoas, parece-me legítimo e bom. Aparentemente a avenida parece fraccionada em 5 partes, é necessário explicar o seu fio condutor, a sua teoria de suporte e corrigir o que foi menos conseguido (Praça Luís de Camões) – assim se reforçará a nossa identidade.

              A vida faz-se vivendo, em espaços em constante mudança, mas quando tudo é bem explicado, melhor se digere, é urgente apresentar-se ao público a evolução histórica desta avenida até porque estão em causa dois milhões de euros. Tragam as explicações ao espaço público, já agora, ao terreiro. A mudança nem sempre é fácil de entender e de assumir. A mudança gera sempre conflitos, temos essa experiência durante 350 mil anos e sempre a reclamar.
Publicado em NVR 02/09/2021

[1] https://greensavers.sapo.pt/principal-avenida-de-vila-real-tera-mais-pessoas-e-menos-carros-obras-serao-concluidas-em-agosto/

6 comentários:

Anónimo disse...

Todos deveriam ler e reflectir

irmã do Nuno Té disse...

Esclarecedor. Parabéns.

Rui Esteves disse...

Muito bem

Unknown disse...

"Sobre a reposição do fontanário da aguadeira, que agora até foi promovida abusivamente a Maria da Fonte, a mudança de localização retoma a posição original e o enquadramento não arborizado, assume a forma de terreiro tal como existia antigamente." Verificando fotos antiga da localização, ela localizava-se em frente ao edifício do governo civil/esquadra da policia.

o melhor disse...

Parabéns, Anabela. Ótima reflexão!

fernando disse...

Continua assim, activa e crítica. Grande abraço