Podia muito bem ser eu.
Juntava a água com sabão e
procurava uma palhinha feita de fibra vegetal
verdadeira para soprar. Não havia detergente. Governava-me com o sabão rosa da
cozinha. Ia até uma das varandas da minha casa, mal chegava à parte superior do
gradeamento e soprava. Entrava num sonho circular feito de transparências de
azul e anil e acreditava que a vida dos adultos era muito melhor que a minha. Se eu fosse adulta não teria de usar tranças, nem
soquetes, nem laçarotes e poderia ocupar-me com as coisas que eu considerava
verdadeiramente boas - andar na carroçaria de uma carrinha e em pé, tomar banho
de mar sem bóia, conduzir uma mota, pintar com trinchas, fazer contas de cabeça
com ar de preocupada... poderia comer bife com batata frita todos os dias,
poderia usar saltos altos e bigodins nos cabelos e podia recolher todos os cães
perdidos. Poderia ter um jacó, que conversasse permanentemente comigo.
As bolas soltavam-se e levitavam no ar por segundos
que para mim pareciam eternidades.
in "Ensaios de escrita um projecto sempre
adiado" Anabela Quelhas.
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