20 dezembro, 2006

Noite de Natal


Atravessei a rua, naquele passo que não tem pressa de chegar, mas num ritmo acelerado de fuga ao frio, e de engano ao nevoeiro, que teimava atravessar-nos de uma ponta à outra.
A respiração se transformava rapidamente em nuvem de vapor, que eu aproveitava para fazer efeitos visuais, que saíam por entre o cachecol e me distraiam o olhar, das vitrines cheias de agasalhos, e das ruas decoradas e brilhantemente em festa.
Atravessei mais uma rua e entrei pelo mercado da praça de Lisboa… olhei o início da noite a desertificar o espaço urbano sob aquela nuvem amarela que paira sobre a baixa, e ia-me perdendo num jogo de andar e colocar as passadas, exactamente em sítios determinados, numa geometria de pauta musical, que me habituei a construir no espaço multidimensional, que é a mente.
Os eléctricos já passavam quase vazios, com o trinca a consultar o relógio e ansiando pela ceia melhorada.
E eu caminhava… ia partindo o frio, com essa caminhada lúdica e embalada por esta cidade de cor de prata, contornando a faculdade de ciências, com intenção de me dirigir para Carlos Alberto… escutando a noite de Inverno a valer, voltando-me, para admirar mais uma vez, a lua cheia por trás dos Clérigos, alegremente imaginando o calor da lareira e os odores que já estariam a ser fabricados com a canela, e que certamente, já me esperavam àquela hora, sob a forma de ceia de Natal.


No vão de uma porta, encostado ao granito da ombreira, permanecia imóvel um corpo em volume, com jornais como tapetes, que eu olhei, inesperadamente, em diagonal, naquele meu jogo pedestre.

Parei, fiquei imóvel também!

Senti a aorta a latejar, conseguindo facilmente calcular as pulsações sem qualquer aritmética ou máquina de calcular.

Identifiquei aquele velho casaco, gasto e mesclado a cinza.

Não sei rezar, mas naquele momento rezei com convicção.

Rezei para que, por baixo do chapéu, eu não conseguisse avistar uma barba, com longos fios de cabelo alvos, alvos como a neve.
O meu coração de repente se recusou a bater com as imagens que lhe chegavam do olhar.
Os fios alvos como a neve, despontavam por entre o casaco sujo, nos intervalos dos botões e por debaixo do chapéu. Não havia dúvidas, pois eles eram únicos.

Os cabelos, que eu tanta vez contornei e penteei sobre os meus papéis, desenhando-os a várias cores, por serem alvos. Os cabelos, que tanta beleza davam a um corpo alquebrado de ancião... estavam ali, permaneciam ali, abandonados num corpo enfrentando uma noite sem fim à vista.
Quantos lápis se perderam naquele cabelo? Quantos esfumados se diluíram entre as suas mãos angulosas, com unhas bem desenhadas? Quantas aguarelas se misturaram no olhar doce daquele rosto? Quanto carvão contou as suas rugas, que se iam adicionando com a idade, até se tornarem septuagenárias… octogenárias talvez?
Ele foi Zeus, ele foi Júpiter, ele foi Neptuno, ele foi Moisés, ele foi João de Deus, ele foi Marx, ele foi Engels, ele foi Eiffel, ele foi Antero de Quental, ele foi Guerra Junqueiro… ele foi José, ele foi tudo, o que nós queríamos que ele fosse.
Posicionava-se como cada um queria: nu, vestido, de verão ou de inverno, sentado, de pé, contorcendo-se… ora facilitando o esquisso, ora valorizando a torção do tronco, ora distinguindo a luz sobre um músculo, ora disfarçando a imperfeição dos nossos traços através do melhor ângulo da anatomia de seu corpo...
Conheceu mestres e aprendizes, e estes, quando se tornaram mestres, também, num rodopiar de anos e décadas, alternando com diversas gerações numa escola de artistas.
Ele era o modelo anatómico perfeito.
Era o nosso homem vitruviano, inscrito simultaneamente, num circulo e num quadrado! Com o seu crâneo estampado antropométricamente no nosso lápis, aprendíamos a proporcionar os traços, repetindo-o mais sete vezes, tal como um módulo, até chegar aos pés… um esquemazinho de linhas paralelas, essencial para orientar e estruturar toda a construção de um corpo ainda sem alma, com centro no umbigo, harmonizando e redescobrindo as razões de ouro.
Foi esboço, ele foi esquisso, foi retrato, foi escultura, foi tela, foi cenário, foi emoldurado, foi inaugurado, sempre com alma de alguém importante… ao sabor do naturalismo ou deformado e decompostamente cubista.
Ele foi Apolo, foi Adónis… e foi mudando de identidade conforma os anos se lhe iam entranhando na pele e embaciando a vivacidade do olhar.
Horas e horas á nossa frente, destilando dias, sem horário, em troca da refeição e de um mísero salário, que minguava, conforme envelhecia, inversamente proporcional às muitas horas que já não conseguia posar em pé.

Silencioso.

Discreto.

Como se exige a uma estátua!

Por vezes esquecido.

Frequentemente substituído, curiosamente por ele mesmo, ou do que ele sobrava numa folha de papel, abandonada anos e anos, numa pasta amarrada por uma fita azul.

Nessa noite, soube que era sozinho e que tinha doado o seu corpo à Ciência.

Chamei por ele!

_ Senhor António???!!!...

5 comentários:

Pena disse...

Que forma de expressão tão maravilhosamente elaborada. Que profundidade emocional expressa. Brilhante! É como classifico o que li com paixão. Com paixão, de certo, seria o teu Senhor António! Gostaria de tê-lo conhecido, acredita.
Parabéns. Escreve e sentes as palavras como ninguém!
FELIZ NATAL.

Anónimo disse...

Ainda dizes que não sabes escrever! que dás uns traços!!!
Sensibilizei-me ao ler, não conheci o Sr. António, mas quem poderá adivinhar os mundos de tantos sem abrigos que vagueiam pelas grandes cidades?
Elisa Matos

Anónimo disse...

Um verdadeiro conto de natal!
José Vieira

Anónimo disse...

Então quando acabamos as férias?
Já temos saudades de ler/ver.

Anabela Quelhas disse...

Estou quase quase chegando, e sentindo a falta de todos.Hoje só espreitei.
Abração!!!!!!!!!!!!