14 outubro, 2006

Pessoa (pintura Júlio Pomar)

I
Sim, farei...;

e hora a hora passa o dia...
Farei, e dia a dia passa o mês...
E eu, cheio sempre só do que faria,
Vejo que o que faria se não fez,
De mim, mesmo em inútil nostalgia.
Farei, farei...

Anos os meses são
Quando são muitos-anos, toda a vida,
Tudo...
E sempre a mesma sensação
Que qualquer cousa há-de ser conseguida,
E sempre quieto o pé e inerte a mão...
Farei, farei, farei...

Sim, qualquer hora
Talvez me traga o esforço e a vitória,
Mas será só se mos trouxer de fora.
Quis tudo -- a paz, ilusão, a glória...
Que obscuro absurdo a minha alma chora?
II
Farei talvez um dia um poema meu,

Não qualquer cousa que, se eu a analiso,
É só a teia que se em mim teceu
De tanto alheio e anónimo improviso
Que ou a mim ou a eles esqueceu...
Um poema próprio, em que me vá o ser,

Em que eu diga o que sinto e o que sou,
Sem pensar, sem fingir e sem querer,
Como um lugar exacto, o onde estou,
E onde me possam, como sou, me ver.
Ah, mas quem pode ser o que é?

Quem sabe
Ter a alma que tem?
Quem é quem é?
Sombras de nós, só reflectir nos cabe.
Mas reflectir, ramos irreais, o quê?
Talvez só o vento que nos fecha e abre.
III
Sossega, coração! Não desesperes!

Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre o sonho o que só quer não tê-lo!

Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo! Dorme!

O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.

Fernando Pessoa
1933
(Novas poesias inéditas)

3 comentários:

Pena disse...

Que poeta!Deslumbrante!
A escolha só poderia ser tua!
O coração e a Alma parecem falar!
Descortino muita coisa, de uma vez só!
Descortino sentimentos, emoções e muita ternura, próprias da vida de quem sonha.
Continua. Tens talento.
Saudações

Anónimo disse...

A vida
é um instante.
Brilho fugaz,
penumbra constante.
A vida
é um instante.
O rosto que amei,
o nome que esqueci.

Fevereiro/2006

JAS

Anónimo disse...

Adorei, este sim um verdadeiro POETA.
Escreve com o coração!!!

Um poeta
Não se vê a toda a hora
venham a este blog
LEMBRE-SE: não interessa onde mora