18 junho, 2025

"Por aqui ninguém tem sangue puro"

 

"Por aqui ninguém tem sangue puro" 


"Por aqui ninguém tem sangue puro" disse Lídia Jorge no dia de Portugal, senhora de 78 anos, membro do Conselho de Estado, escolhido pelo Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, para o período de 2021 a 2026.

Entendi o discurso de Lídia Jorge tão impactante e tão importante que decidi lembrá-lo aqui, reforçando e refrescando a memória dos mais esquecidos, condenando o racismo e a falta de cultura sobre a nossa identidade. Este 10 de Junho teve um sabor entre o mel, a mostarda e o limão, como se nos estivéssemos a despedir da democracia, o que me entristeceu, mas isso é outro assunto.

No século XVII, cerca de 10% da população portuguesa tinha origem africana, resultado do tráfico de escravos trazidos pelos portugueses, não de invasões. Essa história de “sangue puro” é falsa, pois todos somos um mix de diferentes origens: nativos, migrantes, europeus, africanos, brancos, negros e outras cores. Somos descendentes tanto de escravos quanto de senhores, de piratas e de vítimas de roubos, de pessoas cruéis e de misericordiosos. A nossa identidade é uma mistura complexa e diversa, fazer o quê? Resta-nos apostar na diversidade e na riqueza multicultural de que somos feitos e sentir orgulho pela nossa história, porque mesmo nos momentos mais sombrios do Império, estavam em sintonia com mundo daquela época.

No dia 10 de Junho, em Lagos, uma escritora destacou a importância de reconhecer a história e a diversidade cultural de Portugal, interligando o centenário de Camões. Na sua intervenção, abordou o passado esclavagista do país, lembrando que essa história faz parte da nossa identidade colectiva. Também salientou a miscigenação que caracteriza o povo português, afirmando que “aqui ninguém tem sangue puro”. Claro que o seu discurso não foi bem acolhido por aqueles que pensam diferente e nem conhecem bem a História de Portugal para poder rebatê-la e alimentar a sua indignação e protesto. De imediato partes do seu discurso foram manipuladas e divulgadas nas redes sociais, passando a ideia exactamente oposta da intenção da escritora.

Cada um de nós é uma soma de origens ao longo a da história. Lídia focou o seu discurso em Camões, e toda a complexidade que se vivia na época de Camões, porém, a questão das origens leva-nos ainda mais longe. Sabemos que muito antes dos Descobrimentos, ainda Portugal não era Portugal e o nosso território já tinha sido ocupado por romanos, visigodos, suevos, vândalos, alanos, e posteriormente pelos mouros (árabes e berberes).

Ou seja, defender qualquer teoria da diferença entre seres humanos que vivem actualmente em Portugal é uma grande falácia, que não pode nem deve justificar manifestação de ódios racistas actuais.  Apenas somos uns mais altos e outros mais baixos, uns mais magros e outros mais gordos, mas o que nos corre nas veias é um fluido completamente misturado de cor vermelha, chamado sangue policromático, que se divide apenas em tipo A, B, AB e O, constituídos por plasma, hemácias, leucócitos e plaquetas. Isto é o que a ciência nos diz. Mesmo aqueles que consideram ter sangue azul, é simplesmente vermelho e não encarnado! (ironia)

Todos somos descendentes dos invasores da Península Ibérica, e somos descendentes tanto dos escravos como dos senhores que os escravizaram, somo feitos de emigrantes e imigrados, de fortes e de fracos, de ignorantes e de sábios, de homens e mulheres, de pobres e de ricos, o que nos deve levar a praticar a tolerância, a inclusão e o respeito pelo outro.

"Por aqui ninguém tem sangue puro" (e para que raio alguém quer o sangue puro?!) Nem todos são portugueses, mas todos somos seres humanos.

Publicado em NVR 18|06|2025

Sem comentários: