O sermão de Santo António aos peixes
O sermão de Sto.
António aos peixes, é mais conhecido na sua repercussão na acção do Padre
António Vieira contra a desumanidade com que os colonos portugueses tratavam os
índios, no Brasil do século XVII, do que na sua versão original, com o António
de verdade do século XIII.
O sermão é uma alegoria
onde a história dos peixes é usada para transmitir uma mensagem sobre a conduta
humana, criticando os vícios e exaltando as virtudes. Adequa-se a todos os
tempos, é intemporal, mas exige, raciocínio e pensamento crítico por parte dos
ouvintes sobre o tema: a variedade enorme de peixes que existem, o que fazem
para se comerem mutuamente e a sua ambição de poder, atitude aplicável ao ser
humano que ambiciona o poder e é corrompido por ele.
Frei António era um
orador eloquente e distinto que viveu no século XIII, e considerava a humildade
como a virtude mais importante.
Em 1223, estava António
em Rimini (Itália), cidade conhecida como berço das heresias, sobretudo dos Cátaros
que desafiavam a autoridade da Igreja Católica, perante uma multidão de hereges
que não davam crédito às suas palavras proferidas com o objectivo de trazê-los
à “luz da verdade”. A presença de António incomodava-os, ao que estes
respondiam com palavras ríspidas, desconsiderando as suas pregações. Desapontado,
dirigiu-se à foz do Rio Marechia e suplicou a Deus por inspiração divina. Aproximou-se
da água e começou a chamar os peixes.
“Ó peixes, meus
irmãos, vinde vós ouvir a palavra do Senhor, já que os infiéis fazem dela pouco
caso!”
E logo se reuniram
diante de António imensos peixes, grandes e pequenos, de várias espécies. E
todos eles punham a cabeça para fora d’água, respeitando-se e ficaram a
ouvi-lo, atentamente. [os
cépticos devem perceber que na vontade de Deus tudo pode acontecer]
Foi um grande espanto
ver os peixes grandes nadarem com os mais pequenos, e os pequenos sem medo, nem
perigo, passarem sob as barbatanas dos maiores em segurança, resultando um
grande auditório organizado, com os peixes a tomarem o seu lugar para assistir
à pregação, ficando quietos sem fazer barulho; e os peixes pequeninos chegavam-se
ao orador como se ele fosse o seu protector.
“… meus irmãos
peixes, vós deveis agradecer ao vosso Criador por vos ter dado um elemento tão
nobre no qual viver… água salgada. Deus deu-vos muitos abrigos contra as
tempestades e alimento para viver.”
“…Deus deu-vos a sua benção. No grande dilúvio Deus preservou somente a vós, sem dano ou prejuízo… Vós fostes a comida do Rei eterno, Cristo Jesus, antes da Ressurreição e, de novo, depois dela,… quando nosso Senhor… comeu peixe na praia com os seus apóstolos. Por todos esses favores, vós deveis louvar e bendizer a Deus que vos concedeu tantos benefícios.”
Benedetto (um dos
hereges) confuso não sabia para onde olhar e o que pensar. A multidão
influenciável ia chegando ao local constatando o milagre e tirando as suas
conclusões.
“Bendito seja o Deus
eterno, pois peixes da água honram-no mais do que pessoas que negam a sua
doutrina. Os animais irracionais escutam mais prontamente a palavra de Deus do
que a humanidade sem fé.”
As pessoas prostraram-se
com humildade aos pés do Santo, buscando a sua orientação e ensinamentos. O
servo de Deus, ao tomar a palavra, pregou de forma tão excelente e convincente
que conseguiu converter ao catolicismo, os hereges presentes, além de
fortalecer a fé daqueles que já eram fiéis. Após a sua pregação, despediu-se de
todos com alegria e uma bênção, deixando uma impressão duradoura de fé e
esperança na comunidade.
“… minha boa gente e
meus queridos peixes, obrigado por ouvirem com o coração. Voltem agora em paz
para casa.”(adaptação)
As águas
movimentaram-se e borbulharam. Quando Benedetto enxugou os olhos e conseguiu
ver de novo, a superfície da água estava coberta de círculos resultantes do
mergulho dos peixes sob as ondas.
Esta história do
catolicismo é uma metáfora utilizada, quer por religiosos, quer por ateus, para
criticar a ignorância e a indiferença dos homens diante da verdade. A comparação entre o comportamento
dos peixes e o dos humanos serve para alertar sobre as consequências do orgulho
e da desumanidade em diferentes contextos históricos.
Padre António Vieira aludiu a este sermão e através da história dos peixes, demonstrou os vícios dos homens, como a ambição, a violência, arrogância e a falta de respeito, em contraste com as virtudes dos peixes, como a sua submissão e a organização, convidando à reflexão sobre a natureza humana, a fé, a virtude e ao combate às más acções através do entendimento e do respeito mútuo. A sua utilização por Vieira reforça o seu poder de crítica social e moral, tornando-o uma ferramenta de transformação e consciência coletiva, ainda hoje urgente e actual.
Publicado em NVR. 11|06|2025
Imagem: Jorge de Faria Moreira
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