26 junho, 2024

Há dias tristes que não deviam existir.

 

Há dias tristes que não deviam existir.

Conheci-o já eu tinha 12 anos, em Coimbra, porque foi assim que os desencontros da vida decidiram.

Homem sóbrio, discreto, frugal, bonito, inteligente, informado, modesto, altruísta, humanista, com sentido de humor e nunca perdeu uma certa ingenuidade, apesar da vida longa.

Até ao final da vida partilhou o seu conhecimento científico de forma simples e informal, com rigor e detalhe, revelando o seu gigante mundo de saber e boa memória.

Recordo-me dele em diversas circunstâncias, Coimbra, Bragança, Viseu e finalmente em Vila Real.

Médico de profissão, formado em Coimbra e na Suíça. Não hesitava em socorrer quem lhe pedisse ajuda. Salvou vidas, muitas. Casos que pareciam impossíveis e perdidos, ele puxou-os para a cura, conferindo-lhes muitos anos de vida. Poderia exercer a sua profissão nos melhores hospitais do mundo, mas ele tendia sempre para trás do Marão, para tratar pessoas com poucos recursos.

Possuía mãos grandes, e bem desenhadas, eu seria capaz de as identificar em qualquer lado, ágeis e de grande precisão. Treinava o bisturi na linha recta. Achava-se feio, quando era um homem elegante, belo, distinto e cavalheiro.

Tinha um orgulho desmedido das suas origens e um amor eterno pelo sítio onde nasceu, a aldeia de Justes.

Sobreviveu à maior perda que se poderá ter na vida, um filho.

Era um homem de afectos, penso que o seu maior afecto seria o seu amor e dedicação pelo ser humano e a forma de o tratar através da medicina. À noite era incapaz de se deitar sem ir ao hospital visitar os seus pacientes e logo de manhã, voltava. Aparecia discretamente, silencioso à porta do quarto ou enfermaria, falava baixo, revelava tranquilidade e isso dava aos pacientes um conforto e segurança enormes.

Também gostava de cães e plantas, sabia imenso sobre botânica e mineralogia.

Ele foi um dos meus primos mais velhos e apesar da diferença de idades e da minha pouca experiência na época, confiou-me a concepção arquitectónica da sua casa, que tentava harmonizar uma quinta na margem esquerda do rio Corgo, com todas as árvores e arbustos autóctones ou que habitavam na sua imaginação. Foi projecto que nasceu e cresceu com muita conversa entre os dois, reflexões e opiniões diversas sobre tudo; eu sempre admirando a sua sabedoria multifacetada, ele corajosamente entregando-se à minha criatividade e aos traços que iam nascendo no meu estirador.

Fez-me perder o receio de tocar no seu cão enorme, mastim espanhol, que quando o visitava, tentava meter a cabeça enorme na janela da minha 4L, para me lamber, e não cabia.

Adorava andar em obras e tinha bom gosto. Partilhava por vezes uma velharia ou outra, que lhe vinham ter às mãos, revelando a sua sensibilidade e conhecimentos artísticos. 

Andar com ele de automóvel, parecia que andávamos sempre em veículo de emergência.

Nos piores momentos da minha vida, foi sempre uma plataforma de apoio e conforto, que nunca esquecerei e lhe serei eternamente grata. Fez de otorrino, obstetra, ortopedista, internista, psicólogo, nas horas que calhava… Nos últimos anos lia o que eu escrevia neste jornal e telefonava-me por vezes a elogiar ou comentar: “Quando te leio, parece que estás a falar comigo. Escreves como falas.”

Visitava-o, a conversa agigantava-se, adorava que eu partilhasse peripécias da aldeia onde nasceu ou situações que lhe fizessem recordar a sua infância e a nossa família. A risada nascia e crescia. Falávamos também de pessoas antigas, descodificávamos a nossa genealogia, os tios, os primos, os avós e bisavós. Dizia-me sempre que o meu pai era apaixonado pela minha mãe e que se recordava deles a namorar.

Eu baralhava sempre o dia do seu aniversário, porque eu e outros familiares nascemos em Março, e normalmente lembrava-me sempre com um dia de atraso. Imperdoável.

Finalmente um elogio à sua companheira, que nos últimos anos de vida, se excedeu sempre em carinho, protecção, paciência e zelo.

            Há dias tristes que não deviam existir.

Escolheste o dia dos médicos para nos deixar. Vou ter saudades tuas, até sempre, Otílio. (18/06/2024)

Publicado em NVR- 26/06/2024

RIP  (Requiescat in pace) - Otílio Palheiros Figueiredo

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