10 junho, 2024

faz 50 anos

 FAZ 50 ANOS


De crisálida a borboleta

 

              Há vinte e quatro horas, eu era uma adolescente alegre, despreocupada, feliz e hoje transformo-me numa mulher. Despi a adolescência em Luanda, pouco antes de entrar no Aeroporto Craveiro Lopes, com destino a Lisboa, já sem esperança de regresso breve. Abandono essa fase de transição da vida e adquiro competências rápidas para aceder à maturidade social.

              Entro na idade adulta, tal como uma crisálida que se transforma em borboleta, da noite para o dia, encurtando preguiças, dúvidas juvenis, inseguranças, rebeldias e acelerando a autonomia, a tentativa de um maior discernimento e responsabilidade da maturidade.

              É nesse estado do meu desenvolvimento holístico que entro no avião, desconhecendo onde me levará esta metamorfose activa que levo comigo.

              Tento resistir ao choro. Não entendo esta retirada precipitada, desconheço razões que justifiquem a determinação do pai em sair e não voltar a Luanda, após as férias. Despedi-me da minha cidade, contrariada, receando nunca mais ver os meus amigos. Nasci e vivi em Luanda os últimos anos. Sete anos, os melhores anos da minha vida, com o desabrochar da minha personalidade, da minha rebeldia, o desenho das minhas convicções e valores, numa cidade encantada, cheia de contradições e de assimetrias, mas motivadora, exuberante, apostada em crescer e em desenvolver o potencial de um território.

              Após a ceia servida a bordo, já passa da meia-noite, os pais tentam dormir. Fingimos dormir. De olhos fechados, penso em tudo que se passou nestas últimas vinte quatro horas e a despedida inesperada da cidade de Luanda, determinada pelo pai, mês e meio após a Revolução dos Cravos[1]. Luanda parecia serena e tranquila, reinava a paz em todas as ruas, porém, o pai considerou que retirar a família para a Metrópole, agora, é a decisão mais sensata e assertiva.              

              Fingimos dormir. Sim, fingimos. Como alguém poderá dormir vivendo este trambolhão impensado? Ao contrário das outras viagens de avião, não me interessa em que lugares viajamos, se vou ou não à janela, nem presto atenção a ninguém. Faço um balanço da minha vida e das inseguranças que me invadem nestas últimas horas, de olhos fechados tento controlar a minha respiração, tornando-a aparentemente regular, cadenciada e serena. Sinto que parte da minha vida foi amputada sem eu perceber as razões, e esta ferida marcar-me-á para a vida. Não me matará, mas irá moer-me toda a vida sem escolher hora ou local.

              Não consigo projectar-me no futuro, prever o que acontecerá em Setembro, quando se iniciar um novo ano lectivo, e como me irei organizar. A caminho do aeroporto, o meu pai deu indicações precisas à minha irmã que ficou em Luanda, para ir ao liceu, obter o meu certificado de habilitações do 6º ano / 1º ano do Curso Complementar e enviar com urgência para a Metrópole.

              Vou dormitando por cansaço, encostada ao braço do pai, ou melhor dizendo, o sono tropeça em mim ao longo da noite. A minha cabeça parece um labirinto de ideias e situações que me empurram para este amadurecimento repentino e prematuro, que se traduz anatomicamente, num brutal nó na garganta. Apesar de contrariada, ainda no interior do avião, decido não pressionar os pais com o regresso a Luanda. Esta mudança repentina na nossa vida, deve ser ainda mais penosa e complexa para eles, que já têm cinquenta anos e grandes responsabilidades. Aguardarei serenamente, tentarei não criar conflitos, fingirei até algum entusiasmo para que não se preocupem comigo. Terei de aprender a digerir tudo sozinha. Serei uma óptima aluna para fazer o meu curso rapidamente, se o pai conseguir suportar as despesas, confio que sim.

              Chegamos a Lisboa, sem grandes conversas, uma viagem inundada por mutismo e pessimismo. Esta viagem não se reveste de alegria nem de entusiasmo, como todas as anteriores, em que eu exteriorizava por excesso, a minha adolescência divertida e irónica. A minha metamorfose despe-se de amigos e conhecidos, recheando-me de um grande vazio existencial e revolta, sem saber o que será o meu futuro e o da minha família e o que faço ao passado. Parece-me que dispo uma túnica leve e fresca e visto uma camisa-de-forças, contendo-me, apertando-me e sufocando-me. Não me foi dado poder de decidir sobre ficar ou partir, porque apenas tenho dezasseis anos e não sou autónoma.

              Em Lisboa, não vejo militares nas ruas, nem cravos nas mãos das pessoas, como eu imaginava, vejo cerejas, lá estão elas na rua a vender, tudo parece normal, com mais animação transpirada em frases escritas em paredes, apelando à Revolução de Abril. O entusiasmo de algumas pessoas contrasta com o nosso constrangimento, a nossa contenção, os nossos sucessivos nós na garganta. Os táxis continuam a cheirar a combustível, a estofo mal lavado e o rosário continua pendurado no espelho retrovisor, a oscilar a cruz durante a viagem. Lisboa continua movimentada e parece-me iluminada já pela luz do Verão. Oiço uma carrinha com um megafone a percorrer as ruas perto do aeroporto, emitindo uma canção que apela à revolução e anuncia um comício.

              Tomamos a rota da aldeia transmontana onde os pais nasceram, onde estão as origens da nossa família e onde conservam uma casa adquirida pelos pais no pós-guerra. Vivi nessa aldeia alguns anos da minha infância e nas férias dos últimos quatro anos.[2] Este ano não é igual, não sinto ansiedade, nem alegria, ao pensar no reencontro familiar. Sinto peso na alma, como se carregasse um fardo de toneladas de saudades, que já se manifestam, recentes e densas e que me asseguram tristezas futuras, amanheceres apáticos e entardeceres melancólicos.

              Passamos por Coimbra para ver a minha irmã mais velha que estuda História, na Universidade. Coimbra mantém o seu ambiente estudantil.

              “Nem mais um soldado para a Guiné”, vejo escrito junto às Escadas Monumentais. Dirigimo-nos para a Rua da Matemática, junto à Real República dos Corsários das Ilhas. Agora é diferente das outras vezes. Os meus pais expressam cansaço e desânimo, apesar da alegria do reencontro com a minha irmã. Não conversamos sobre ontem, sobre a despedida nocturna da cidade de Luanda. Esta é uma cumplicidade silenciosa que guardaremos para sempre no interior do nosso coração. Falamos do crescimento da minha sobrinha pequenina, que ficou em Luanda, sobre as suas primeiras palavras e as suas travessuras. Falar sobre uma criança sempre dá cor aos diálogos, pacifica a nossa mágoa e imprime alguma esperança no futuro.

 

 

.10 de Junho de 1974 - a revolução aconteceu há menos de dois meses e está viva na memória de todos. As cerimónias fascistas realizadas no Dia da Raça, em anos anteriores, para exaltar o Portugal do Império Colonial, fizeram, este ano, uma pausa para ajustar reflexões e procedimentos, coordenados com a revolução e com o Portugal democrático.



[1] O silêncio do kisanji, segundo livro desta trilogia.

[2] O fato que nunca vestimos, o primeiro livro da trilogia.


In "De cereja em cereja beijo o verão" de Anabela Quelhas

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