Todos nós temos o nosso lado A, o lado das atitudes
politicamente correctas que assumimos nas relações sociais, dizemos que somos
tolerantes sem o sermos, apenas porque parece bem, manifestamos paciência
quando nos apetece mesmo esbofetear alguém que nos multou o carro quase
bem estacionado, tentamos assumir o lado sério da vida, escondendo as nossas
megalómanas fraquezas, incompetências e outras coisitas mais … enfim, é o nosso
cartão de visita… do tipo – sabes quem é? Aquele fulano simpático, competente,
charmoso, compreensivo e diplomata , que abre sempre a porta do automóvel às
senhoras… tás a ver quem é?
Depois temos o nosso lado B, que só os mais íntimos ousam conhecer,… somos
aquele que canta no duche e solta uns palavrões quando lhe pisam os calos ou
quando já se esgotou a paciência. Temos conceitos por vezes desfasados do lado
A, senão opostos e contraditórios, e ai aflora por vezes o nosso humor negro, a
acutilância da critica e do parecer, e o acre do revanchismo, do machismo, do
oportunismo, e outros ismos tal como narcisismo e egocentrismo. O lado B somos
nós com letra grande, doa a quem doer, com taras, paradoxos e paradigmas no seu
melhor. É por vezes um lado solitário que só se encarna quando nos fechamos
connosco mesmo na cabine do duche, ou quando muito na retrete… os que são por
norma solitários tem mais espaços para denunciar o lado B – eu por exemplo
praguejo do pior quando cozinho, porque abomino cozinhar. O lado B é o lado
mais interessante de cada um de nós, é aqui que somos francos, directos e
honestos. Aqui também habita a sensibilidade, que por vezes, francamente só
atrapalha. Aqui aflora a nossa alma de artista que todos somos, mesmo que só
cantemos brejeirices do tipo “ bonito, bonito eram os tomates a bater….” Ou
“sabão grá grá, sabão gré, gré"… salta-nos a fera que há em nós e
discursamos, discursamos alto e bom som e inúmeras vezes, repetidamente e cada
vez mais efusivamente, porque gostamos de nos ouvir a discursar para o nosso
chefe, do tipo, “Caríssimo senhor administrador, isto é tudo uma merda, uma
grande e valente e monstruosa merda, parece que estamos no saneamento do pingo
doce, e a sua ignorância mata mais do que o cancro. A sua descompetência parece
uma tábua de engomar roupa depois de ter engomado a roupa de 40.000 comboios de
prostitutas, a sua organização parece a cidade de Monbai em hora de ponta…” ( o
discurso só se interrompe quando nos cai o sabonete na base do duche, ou quando
reparamos que estamos sem toalhão de banho na saída da banheira).
Depois e finalmente temos o nosso lado C, que nem nós conhecemos muito bem. É o
lado misterioso e complexo que habita em nós, não sei onde, e se manifesta
sempre que dormimos, no nosso sonho que raramente lembramos. O nosso lado C faz
longas e longas metragens de tudo e de nada com milhentos personagens, guiões
bizarros, mas com realizador desmiolado, que somos nós, que pouco retemos de
metros e metros de fita, deixando escapar autênticos filmes dignos de vários
óscares na classe SURREALISMO..
É aí que a nossa complexidade se alia à omnipresença, dando a cara a todos os
recursos possíveis e impossíveis, remetendo a ficção cieníifica, para o
depósito das ciências menores. Já mergulhei em situações extraordinárias neste
lado C, as minhas, como cinéfila competente de REM, não me lembro, mas as dos outros,
traduzem-se no mundo real, normalmente em palavras balbuciadas, em diálogos
pespontados, em comunicações ilógicas e consistentes de tudo. Como
interlocutora e investigadora desse lado C, aconselho a nada contrariar, nos
balbuciamentos imprevisíveis. Numa hora ouvimos discursos sobre estantes
italianas, noutra hora apresentam-nos um diálogo feito apenas de preposições, e
temos também a fase narcisista, “Diz-me há alguém melhor, que eu, há? Há alguém
melhor que eu?…. Claro que devemos responder, Não claro que não, só Deus!!!!.
Não se confunda tudo isto com sonambulismo. Não, Um sonâmbulo é pacifico,
levanta os braços e dá corda aos membros inferiores e o máximo que pode
acontecer, é querer deitar-se dentro da casota do Boby… Eu refiro-me ao lado C
que se manifesta por vezes intervalado com o lado B. O interlocutor fala de
alhos e o autor do lado C responde bugalhos, um dialogo inteligente (!?) e
hermético (!?)onde o interlocutor tenta construir um fio condutor no dialogo e
o artista do lado C ora fala da comida congelada que esta na arca frigorifica,
como do tsunami do Rio de Janeiro que ainda irá acontecer, passando pelos botox
corbusianos implantados na capela de Ronchamp, e o globo de ouro do sr
Aristides da mercearia… e afinal dá-me os cotonetes e os coentros. Esta visão
esofágica do exterior para o profundo do lado C, através de um sonilóquio,
aparentemente desgovernado, ora sereno, ora emotivo, ora melodramático
ensonado, devolve-me sorrisos angelicais que se desconseguem de outra forma. A
delicadeza da situação, dessa algraviada de palavras na língua do proprietário,
proferidas na 1ª pessoa cheias de convicção, contrastam com a sua negação logo
que o lado C se transfere para o B ou para o A. Não vale a pena insistir ou
contrariar, é pura perda de tempo, resta-nos apenas a delícia de dialogar sem
nexo, entrando nesse mundo virtual de pantufas, como se entra num conto de
fadas. O resto… resta-me escrever.
In “Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado” Anabela Quelhas
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