30 maio, 2025

"UM POETA" - Mário Henrique Leiria



Voz: Anabela Quelhas

"POEMA DA AUTO-ESTRADA" - António Gedeão



Voz: Anabela Quelhas

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Perder a democracia no voto

 

Perder a democracia no voto[i]  


Pare de arranjar justificações viáveis e aceitáveis para esta derrota da esquerda! 

A esquerda saiu derrotada nestas eleições! O PS perdeu cerca de 400 mil votos, o PCP perdeu 22 mil votos, o Bloco perdeu cerca de 150 mil votos.

Previsível, mas nem tanto. Todos nós portugueses temos pelo menos um emigrante e um perseguido político na família do tempo da outra senhora, reconhecemos que todos deveriam estudar, todos recorremos ao hospital público quando a saúde desanda, todos conhecemos alguém que algum dia viveu numa pobreza extrema, todos reconhecemos a importância da lei e dos tribunais, e defendemos direitos iguais para todos, porém a democracia funciona assim, ganha e manda quem tem mais votos.

A esquerda há muitos anos que prefere a desunião, em vez de unir forças para construir um Portugal melhor. Olham para o próprio umbigo, divididos nos seus egos e considerando que são os maiores e únicos, em vez de se unirem em princípios comuns ou próximos, e converter fraqueza em força para entender o que se passa em Portugal e no resto do mundo. Cada um pretende ter um partido só para si, feito à sua medida, evidenciando uma profunda ausência de responsabilidade e embarca num processo utópico que deu mau resultado: este resultado. Claro que a diversidade enriquece, mas vivemos tempos em que a democracia pode estar em risco, assim como a Constituição da República, o estado social, a escola, a saúde e urge não perder tempo.

Juntando toda a esquerda, nestas eleições, não as ganhariam, mesmo assim, nem tudo são números visíveis. Os pequenos partidos que não conseguem eleger deputados, desperdiçam votos ou embarcam no voto útil. Os que desperdiçam voto, pertencem aquele grupo de eternos sonhadores, que acreditam que um dia será possível. Os que fazem voto útil, vivem numa frustração infinita, entalados entre o dever e o escolher o mal menor. E como sabemos, o que não é “regado” não dá frutos e seca.

A esquerda tem vindo a secundarizar os direitos de quem trabalha e das suas causas essenciais, que são a estrutura tradicional da esquerda: a defesa dos mais fracos e desfavorecidos, procurando uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais solidária. A estratégia de vir para a rua reclamar e fazer greve, ou enterrar a cabeça na areia e empolgar questões mais secundárias, em certos contextos, já não resulta. É preciso reinventar e criar uma nova unidade e ter votos para estar na Assembleia da República e depois tomar decisões.

Estas eleições foram construídas mais pela “desescolha” do que pela escolha. Foi um verdadeiro cartão vermelho aos governantes, desde o centrão até à esquerda radical. Perder a democracia no voto, é algo estranho e muito grave. É um murro no estômago.

Os partidos da esquerda sofrem todos de um complexo da liberdade, que os tolhe, escolhendo deixar andar, em vez de resolver problemas. Evitam apoiar reformas, sempre preocupados com os “coitadinhos”. A boa intenção de estar sempre do lado dos mais fracos, tolda-lhes a racionalidade, para fazerem reformas que podem resolver grande parte dos problemas deste país. Uns são sempre do contra, porque não gostam do PCP, outros inflexíveis porque se focam em causas complexas, válidas, mas que envolvem minorias e ainda outros, que se fiam que tendo maiorias conseguem acertar rotas cegas neste país desgovernado, sem apoio dos outros. Está na hora de unir e cortar caminho com uma oposição forte, unida, séria, racional, criativa e estratega. Não interessa quem tem mais militantes, interessa unir recursos e estratégias.

Temos uma escola pública desgovernada, que é mais escola de pais do que de alunos e professores, temos hospitais privados a serem pagos para fazer serviço publico, temos uma justiça demorada, com fugas de informação, temos falta de habitação atribuindo-se culpas, erradamente, aos investidores privados, temos necessidade de mão-de-obra dos emigrantes, mas não queremos estabelecer regras para os receber, temos privatizações selvagens e depois panicamos com simples apagão, temos os policias que não podem agir perante a desordem, temos quem roube no supermercado e vai “dentro”, em oposição aos Ricardos Salgados da vida, que continuam impunes, temos os nossos filhos que emigram, e saltitam de lugar em lugar sem possibilidade de formar uma família, temos muitos reformados com reformas miseráveis, temos aqueles que abandonam os pais, ignoram os filhos, mas andam com o cachorrinho ao colo, temos os problemas de identidade, que querem trocar de sexo, temos a violência doméstica em que pouco se protege as vítimas, temos também os jovens que acham que o dinheiro cai do céu sem esforço e cujos ideais são passar férias e ir a concertos, temos os ambientalistas que não dispensam o seu banho diário, o conforto no lar e o seu carrinho à porta, temos um bando de críticos de sofá que fogem aos impostos e se colam a tudo que seja benesse individual, temos aqueles que censuram o rendimento mínimo, em vez de odiar o oportunismo,  temos falhas na legislação para resolver problemas, temos uma comunicação social paupérrima que privilegia a notícia com impacto, tanto pela positiva como pela negativa, dando canal à alarvidade e â bizarrice, esquecendo-se dos princípios e dos valores da sociedade, temos o grande partido do abstencionismo com 36% de irresponsáveis e temos um partido sôfrego para absorver todas as problemáticas, que surgem num país democrático, para atrair e manipular eleitores, como se eles tivessem formulas mágicas para resolver todas elas, e que põem todo o país em sobressalto.

Começa-se a desenhar o medo na liberdade de expressão.

Os portugueses querem viver melhor e têm esse direito! E a bitola deve ser sempre ambiciosa, mas não ambicionemos o paraíso, nem sociedades perfeitas, porque isso é utopia.

Não chore pelo leite derramado, nem avalie os que votaram à direita como burros e idiotas, quando muito são influenciáveis na sua esperança inata de viver melhor, esquecendo-se, a maioria, que os seus interesses de classe média ou de classe mais desprotegida, nunca serão defendidos por partidos de direita. A direita sempre defendeu o capital, ponto!

Não cruzem os braços, estabeleçam uniões entre os partidos que defendem causas sérias e justas, para podermos votar neles em todo o país. Não podemos desperdiçar votos! Só há esta saída. Desta vez a AD ainda assegurou a maioria, na próxima pode não conseguir. 

Somos um país considerado pobre, que não pode permitir deslizes financeiros ou maus investimentos, que descredibilizem a democracia; é urgente rigor sem desumanizar a sociedade.

Vivemos 51 anos de democracia e liberdade, com muitos problemas, mas parece que ainda não inventaram nada melhor, assim sendo, não cruzem os braços. Perder a democracia no voto, é que não! Porque depois virá o silêncio, o medo e a escuridão.



[i] Apanhei na internet.

Publicado em NVR 28|05|2025

25 maio, 2025

A UMA HORA INCERTA

Realização: Carlos Saboga

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O TEMPO DO CÃO


 

23 maio, 2025

A ALMA DO SR. HITCHCOCK


 "A ALMA DO SR. HITCHCOCK"

Este espetáculo nasce de uma indagação quase detectivesca sobre o mistério do lendário diretor de cinema Alfred Hitchcock e sua esposa Alma Reville. Um mistério múltiplo que envolve ambos... Será que a personagem pública que ele próprio criou correspondia ao Alfred íntimo? Porque é que uma mulher tão brilhante como editora, argumentista e cineasta permaneceu à sombra do grande Hitch?

Um cenário repleto de momentos fascinantes em que acontecimentos biográficos se misturam com a ficção dos lendários filmes de Hitchcock, mas que também são de Alma, não esqueçamos. As quatro mãos do casal podem ser vistas numa união criativa e emocional verdadeiramente surpreendente para a época.

Esta união continua a ter eco nos nossos dias na transgressão de muitas regras e convenções no que diz respeito ao tratamento de temas que continuam a ser os nossos: a violência contra as mulheres, a hipocrisia da sociedade, as faces menos suspeitas do mal, os falsos culpados, os limites do erotismo na sua representação, a ansiedade do nosso tempo, a manipulação e os jogos de poder na criação artística.

Em “A Alma do Senhor Hitchcock” os intérpretes desdobram-se numa será miríade de diferentes personagens, onde as imagens e a gestualidade vão desde o humor ao inquietante, passando por um cuidadoso toque poético, em que o fílmico, o real e o sonhado se misturam sem solução de continuidade.

 

Encenação: Luis Blat

Interpretação: Ángel Fragua e Catarina Caetano

Interpretação musical: Edmundo Pires

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SEBASTIÃO SALGADO

 


SEBASTIÃO SALGADO (1944-2025)
ver:

https://estiradorsemrima.blogspot.com/2015/05/genesis.html

https://estiradorsemrima.blogspot.com/2015/06/genesis.html


"DEFEITO DE FABRICO" - António Pires Cabral



Voz: Anabela Quelhas

22 maio, 2025

21 maio, 2025

SEM AUTORES NÃO HÁ CULTURA


 SEM AUTORES NÃO HÁ CULTURA

 

O Dia do Autor Português comemora-se anualmente a 22 de Maio. Este dia dá destaque ou alerta para a importância dos autores portugueses nas diferentes áreas, destacando a sua importância no desenvolvimento da cultura e no equilíbrio das comunidades.

Sem autores não há cultura, porém vivemos numa sociedade materialista, que não valoriza ou não atribui crédito suficiente aos autores. A importância destes, centra-se na capacidade individual ou colectiva de criar algo que acrescenta à cultura de uma sociedade, mexendo com o pensamento de muitos e accionando o desenvolvimento social, político, artístico, científico, filosófico, humanista e histórico. A intelectualidade da humanidade é o resultado da acção temporal dos autores, daqueles que possuem competências para repensar, alterar e melhorar tudo o que os rodeia, atendendo ao conhecimento prévio, às circunstâncias e à criatividade que transportam sempre com eles.

É a habilidade de pensar “fora da caixa”, de encontrar soluções únicas para problemas, e de expressar-se de forma original que fazem a diferença entre autores e não autores. Esta capacidade para “fazer” não é um dom inato, mas sim uma habilidade que pode ser desenvolvida e aprimorada com prática, estudo, empenho e exposição a diferentes estímulos.

A escrita é provavelmente a forma mais simples e rápida de agir, de fazer, permite que as informações sejam registadas e preservadas ao longo do tempo, possibilitando também o acesso a conhecimentos do passado. A escrita é uma ferramenta essencial para a comunicação humana, que tem sido fundamental para o desenvolvimento da cultura e da sociedade ao longo da História, abordando e registando também as outras formas de “saber fazer”, artísticas e cientificas, que abrem novas perspectivas ao mundo.

O dia 22 de Maio assinala igualmente o aniversário da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) e, este ano, o seu primeiro centenário. Para quem não sabe, a SPA é uma cooperativa de responsabilidade limitada, fundada em 1925 para a Gestão do Direito de Autor, nos termos da legislação em vigor.

Isto diz-lhe alguma coisa? Direitos…, plágio…, cópias…, apoderar-se daquilo que não lhe pertence?

Sim, quem é autor possui os seus direitos que nem sempre são respeitados, ou seja, não se pode copiar aquilo que outros criaram. Direito de autor, também chamado copyright, confere aos titulares de criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, o direito exclusivo de dispor da sua obra e utilizá-la, ou autorizar a sua utilização por parte de terceiros, total ou parcialmente. Mesmo quando uma obra é do interesse de uma comunidade, nunca se pode romper o fio de ligação ao seu autor.   

                                     “O seu a seu dono”

Publicado em NVR, 21|05|2025

"CAMINHANDO" - Teixeira de Pascoaes (repetido)



Voz: Rosa Canelas

PIXOTE a lei do mais fraco


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Realização: Hector Babenco


17 maio, 2025

Palácio Rundále


Palácio de Rundāle é o mais importante palácio barroco na Letónia e um dos mais importantes monumentos históricos do país, sendo referido muitas vezes como o Versailles do Báltico.

O palácio foi construído na década de 1730 como residência de Verão de Ernesto João de Biron, o Duque da Curlândia. O seu arquitecto foi Bartolomeo Rastrelli, responsável, igualmente, pelos desenhos dos imperiais Palácio de Inverno e Palácio de Verão, ambos em São Petersburgo.

14 maio, 2025

"EPIGRAMA IMITADO" - Manuel Maria Barbosa du Bocage

"EPIGRAMA IMITADO" - Manuel Maria Barbosa du Bocage

Voz: João Carlos Carranca

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O copo da ganância

 


O copo da ganância 

Estou saturada de campanhas eleitorais, do Senhor Almirante, do fumo branco do Vaticano, os resquícios do apagão, de almoços de família, então escrever o quê?

A antiguidade cada vez mais me inspira para reflectir e escrever. Partilho com o leitor o enigma do copo de vinho inventado por Pitágoras.

Pitágoras viveu entre o século V e VI antes de Cristo e para além de matemático, foi também filosofo. A maioria de nós ainda se lembrará da importância do seu teorema sobre o cálculo das medidas dos lados de um triângulo rectângulo - o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados de cada cateto.

Pitágoras pretendendo ensinar aos seus discípulos a virtude da moderação, evocou um copo especial, que ficou conhecido por copo de Pitágoras, que denunciava a ganância das pessoas, ou mais precisamente, a falta de moderação e equilíbrio no consumo de vinho dos seus contemporâneos.

A ganância é uma forte vontade de obter aquilo que se admira, para si próprio, de uma forma insaciável - dinheiro, bens, poder ou uma vantagem qualquer que lhe convém. Esse desejo de acumular algo valioso, de forma excessiva ou desmedida, excedendo o necessário ou justo, leva o ganancioso a atitudes egoístas, impulsivas ou até anti-éticas. É um sentimento individualista em detrimento do bem comum, em que se desprezam as consequências para si ou para os outros, levando à degradação de valores morais do ser humano. Os seus autores cegos pela ambição podem recorrer a meios ilícitos para alcançar os seus objetivos - corrupção, a manipulação de pessoas e situações, competição doentia, fraudes e violência.

Este sentimento condenável também se pode aplicar a situações mais simples, como beber ou comer.

Voltando a Pitágoras, este terá inventado um copo e utilizou-o para ensinar aos seus discípulos, de forma divertida, a importância da moderação no consumo de vinho, com um dispositivo clássico da hidrodinâmica – a ética e a física de mãos dadas.

O copo de Pitágoras ou cálice da justiça é um dispositivo que utiliza o princípio do sifão. Funciona normalmente desde que o líquido não exceda um determinado nível. Acima desse nível o copo perde líquido, graças ao princípio dos vasos comunicantes. Dentro do copo há um tubo em forma de U que liga a base à borda. Quando o líquido ultrapassa um certo nível, começa a fluir através deste tubo, causando um efeito sifão que drena todo o conteúdo do copo, prevenindo o excesso de consumo.

A origem desta informação encontra-se no livro “Diálogos dos mortos” de Luciano de Samósata, com uma narrativa um pouco satírica numa outra situação, em que Pitágoras oferece ajuda a Eupalinos de Mégara, engenheiro e arquitecto, com uma solução para um problema que o afectava na construção de um aqueduto, pois os seus operários embebedavam-se e iam atrasando a conclusão dessa obra.

A imagem é elucidativa.

Eu diria, provérbio antigo: quem tudo quer, tudo perde.

Publicado em NVR 14|05|2025

 

12 maio, 2025

O FATO QUE NUNCA VESTIMOS - faz oito anos.


Faz oito anos que começou a aventura (visível) da escrita. Tem sido um percurso cheio de surpresas, aprendizagem e disciplina, que foi dando os seus frutos. É boa a sensação de ousadia e de percursos e etapas cumpridas, sem nunca deixar de ser apenas uma simples anotadora de espaços e circunstâncias. Obrigada a todos que sempre me apoiam.

VER AQUI 

"LAMBRETA" - António Zambujo



Voz: Anabela Quelhas

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11 maio, 2025

CANDLELIGHT: clássicos do rock

 

ANTECIPANDO

À PRIMEIRA VISTA


 ****

Realizador: Irwin Winkler

NUNCA ME IMAGINEI SEM ELE

 


Nunca me imaginei sem ele, o meu pai

              Foi personagem essencial de muitas fotografias, as primeiras que me tiraram quando decidi nascer, que ainda conservo num velho álbum de folhas de cartolina negra. Fotografias minúsculas recortadas com perímetro ziguezagueante, coladas com cantinhos vermelhos, em que me pegava ao colo, fazendo-me parecer mais crescida, do que efectivamente era. Com dois meses parecia ter quatro ou cinco. Com chupeta, sem chupeta, de repas ruivas ao vento, fazendo caretas…. Sempre a preto e branco, não para fazer estilo, mas por incapacidade da máquina fotográfica daquela época… Sempre ao colo do sr. Quelhas, o meu querido pai.

              Gostava da voz dele, apreciava a sua agilidade, era um homem bonito e culto, lutador, sensível, teimoso e resistente, a fragilidade era a sua força para criar soluções, para ultrapassar barreiras. Chorava quando ria, exactamente como eu. Usava mais os óculos na cabeça do que no nariz, exactamente como eu faço. Não gostava de compromissos assumidos a longo prazo, porque mudava de ideias… gostava de decidir na hora, olhem eu!

              A genética não falha nem mente, para o bem e para o mal.

              Sinto-o como o melhor pai do mundo, mas provavelmente teria os defeitos que todos têm. Os meus olhos já mais maduros de filha caçula, protegida e mimada, continuam a vê-lo como o melhor.

              Quando estava alegre, trabalhava assobiando. Assobiava muitas vezes a banda sonora dos filmes dos anos 50. E cantava bem.

              Sempre o respeitei e sempre o admirei. Pus em causa muitas certezas que ele tinha, mas foi a minha maior referência, quando era criança, quando cresci, quando já pensava ser alguém sem o ser, e após ele faltar.

              Raramente me deu brinquedos, mas deu-me dois dicionários Lello Universal quase tão pesados como eu (na época), cujas páginas separadoras coloridas, coloriram muitas horas da minha infância - os serões monótonos do Inverno, as horas desocupadas depois da escola, os fins de semana vazios de obrigações…

              Deu-me uma bússola, uma clarineta Honner, uns patins, um triciclo e um catálogo de cores das tintas CIN…

              Não riam, porque eu gostei!

              Não me contou histórias de princesas e bruxas más, essa era tarefa da mãe …

              Contou-me histórias sobre o general Humberto Delgado, contou-me histórias de mineiros e de explorações de volframite, contou-me histórias sobre as constelações, contou-me histórias sobre Hitler e a resistência francesa, contou-me histórias sobre escravos e heróis como Galileu e Nuno Álvares Pereira, contou-me histórias de viagens… histórias vividas e recontadas na 1ª pessoa. Contava-me sobre assuntos que lia na revista Reader’s Digest.

              Também gostava de rir, apresentou-me em sala de cinema, Cantinflas, Charlot, Sordi, Fernandel e Louis de Funés.

              Foi ele que me levou a primeira vez, a um observatório do espaço, a um zoológico, a um porto de mar, a um autódromo, a um teatro, a uma pedreira, a uma catedral, a uma mina de água, a um museu, a uma fábrica, a uma fortaleza, a um pântano com jacarés…

              Não riam, porque eu adorei! Aprendi até a subir a um edifício pelo lado de fora, com andaimes obviamente.

              Mostrou-me casas, muitas casas…

              Leu-me jornais, as tiras do Ruca ficavam para a mãe, partes dos Lusíadas e leu-me Saramago. Lia-me sempre algo do que estivesse a ler. Lia, contava e recontava, porque isso o ajudava a reflectir.

              Sempre que eu me sentia entediada com a brincadeira das bonecas e das casinhas ensinava-me a fazer muita coisa, outras coisas, coisas que não se ensinam às crianças por mero preconceito idiota.

              Foi ele que me ensinou a articular conhecimento, ensinou-me a fazer paredes assentando tijolos, tomando consciência que tudo o que é mal construído e não tem boa fundação, cai.

              Ensinou-me a  fazer vigotas  de  pré-esforçado, ensinou-

-me a trocar uma lâmpada, ensinou-me a esticar aço e a fazer grampos, ensinou-me a juntar cimento com areia, ensinou-me a olhar o granito, a descobrir a geometria talhada e a assinatura dos pedreiros, ensinou-me truques para desenhar escadas em obra, ensinou-me os lagos e as montanhas, ensinou-me a ganhar e a perder, ensinou-me a ser tolerante, ensinou-me a raiz quadrada, ensinou-me a gostar de amarelo, ensinou-me a apanhar girinos nas poças de água, ensinou-me a traçar circunferências em jardins e a fazer tiro ao alvo, ensinou-me a não roubar ninhos, ensinou-me a amar a minha avó Felisbela e a ouvi-la, ensinou-me a gostar de mangas, ensinou-me a andar na rua, ensinou-me a proteger um camaleão e a construir um baloiço, ensinou-me a escolher e a colher cogumelos, ensinou-me a compreender a trovoada, ensinou-me a dar nós, ensinou-me os cuidados a ter com a electricidade, ensinou-me o nome das ferramentas (alguns já esqueci), ensinou-me a respeitar os mais velhos, ensinou-me a ter cuidados básicos de saúde, ensinou-me a educar a minha vertigem de estimação, ensinou-me a respeitar o mar e os rios, ensinou-me a apreciar teatro, ensinou-me a importância das minhas raízes e da família, ensinou-me a ter consciência social, ensinou-me o que era diplomacia, ensinou-me a ser inquieta e a não saber esperar, ensinou-me a justiça, a honestidade e a humildade, ensinou-me a autonomia, ensinou-me a ceder e a resistir, ensinou-me a distinguir o bem do mal, ensinou-me o valor real das coisas,… ensinou-me a pensar diferente,…   

              … ensinou-me a liberdade.

              Apesar da minha formação profissional ser muito a continuidade da sua profissão, e de lhe desagradar que eu fizesse um curso de pintura, pensando que serviria apenas para mendigar (tinha razão), surpreendia-o a olhar atentamente para as minhas pinturas, e dizia:

              - As tuas pinturas são melhores do que os teus projectos de arquitectura. Os projectos são bons, mas a tua pintura é muito melhor.     

              Um dia ele parte, após três meses do nascimento do meu filho, sem aviso, sem preparativos, como ele gostava de fazer em muitas situações — a morte inesperada, dura e irreversível.

              Nunca me imaginei sem ele.

              Ficarei só para sempre.

Publicado em "De cereja em cereja beijo o verão"

10 maio, 2025

7º EDIÇÃO - FESTIVAL LITERÁRIO DOURO - último dia

 


CARTAZ

ESPAÇO MIGUEL TORGA


Mesa 3:  Ondjaki, Luís Caetano e Leonardo Padura


Onésimo Teotónio Almeida e Fernando Alves


Pinturas de fundo de Manuel João Vieira, o eterno candidato a Presidente da República


Depois de ouvir algumas histórias de Ondjaki e a recordação de Padura quando esteve em Luanda com os cubanos, e como Ondjaki se inspirou para escrever "O tempo do cão",  pedi a Ondjaki para escrever "Os transparentes 2" ou os "Semitransparentes". 😃


Mais uma vez, Ondjaki a autografar os meus livros, sempre acompanhando com um desenho amistoso e delicado.


Final do festival



Não conhecia Padura, nem a sua obra. Comprei "Ir a Havana" e entrou na fila de espera.



07 maio, 2025

ANITA E O APAGÃO

 

ANITA E O APAGÃO

Levantei-me já tarde e a más horas, a transbordar ócio desta vida pasmada, que acontece entre as obras de Codessais e os cafés cheios de jovens universitários, onde comem snacks e bebem cerveja.

Descobri que não tinha electricidade, porque a máquina do café manifestou-se em greve e a torradeira parecia a bela adormecida. Liguei o telemóvel, acedi a um post de um amigo segurando um transístor. Pensei: velharias! Olhei para o meu relógio eléctrico e vi que este estacionou os ponteiros às 11:33. Mau maria, afinal não era um apagãozito à Bila Real, quando alguém mexe na conduta eléctrica e vai tudo pró galheiro e que dura apenas uns minutos. Olhei pela janela e vi o meu vizinho a tentar fazer fogo à moda antiga com duas pedras. Então que se passa? Perguntei. Fiquei alarmada, disse-me que já não havia fósforos na mercearia da esquina, que já estava aquela confusão nos supermercados, a luta pelos rolos de papel higiénico. Ups! afinal era um ataque da Rússia transformado em apagão total. Foi aviso da protecção civil? Perguntei. Não, soube pelo tio da namorada da minha filha, disse ele. Atirei-lhe com uma caixa de fósforos que tinha guardada há anos, tipo relíquia, adquirida antes dos isqueiros de pilhas.

- Sirva-se, mas não abuse, para durar até ao Verão.

Todos os outros vizinhos ou ainda não estavam em casa, ou faziam de conta que não estavam para não dar abertura a qualquer partilha. O vírus do papel higiénico e a bactéria das latas de atum tornam as pessoas egoístas. 

Cadê do kit de emergência? Só tinha o kit dos pensos rápidos, tesoura, betadine e gaze. Hummm falhei!

Ora, banhos foram à vida, frigorífico e congelador também, cozinhar, nada, máquina de lavar roupa, nem pensar, portão da garagem bloqueado. Tomei banho com 3 toalhetes dodot no esquema, cabeça, tronco e membros.

Tinha sopas instantâneas, segui os procedimentos do meu vizinho. Dentro do tanque de cimento para lavar roupa, arranjei um processo para fazer uma fogueirinha para aquecer água. Não tinha carvão. Apelei para a imaginação. Utilizei a publicidade do Lidl que estava no correio, um dos livros do MST e ainda uma vela com forma de pai natal que deitava umas fagulhinhas tipo foguete. Já deu para fazer a sopa.  Percebi que teria que me governar com os alimentos que estavam em casa, o problema era cozinhá-los.

Comecei a alinhar as conservas que restaram da pandemia. Nem quis ver datas de validade. Quando a fome apertasse, até as aloé veras marchariam e os caracóis do quintal…

Era necessário arranjar combustível para queimar. Juntei as fotos dos ex-namorados, as cartas da tia Elza que continua a escrever-me da forma tradicional, um xaile do Chinês, recibos do supermercado, tinha vários… agora compra-se meia dúzia de produtos e sai da máquina um lençol de papel. Deixei para depois as cadernetas do Montepio, umas sandaletes brasileiras, as gravatas do falecido e os livros de culinária, que também não me serviriam para mais nada.  

Percebi que o meu telemóvel estava sem carga, lembrei-me de umas experiências que se faziam na escola, para motivar os alunos para as energias alternativas, utilizando batatas e uma moeda, tentei construir um batatómetro, mas não resultou. Fiquei sem duas batatas e a consciência do fracasso.

Decidi sair de casa, e dar uma volta a pé, para ver se haveria algum restaurante a servir refeições. Fui logo cravada por dois estudantes que não tinham numerário para comer. Lá foi uma vintena.

Andei a ver por onde me poderia escapar para o rio, quando viessem os Russos e regressei a casa. E como se entra em casa com o portão do quintal que só abre manualmente por dentro?

Favor paga-se com favor, o meu vizinho… também já não estava em casa, fez uma segunda tentativa para comprar conservas e rolos papel de cozinha. Sentei-me no chão até ele regressar e emprestou-me uma cadeira para eu subir e saltar o muro. Decidi barricar todas as aberturas para enfrentar a noite escura, imprevisível e possíveis invasores. Arrastei uma cómoda e a máquina de lavar para travar as portas e escondi as conservas. Considerei converter, no dia seguinte, uma estante de bambu, em combustível… sim, daquelas que tentam fazer a espargata mal se carregam com meia dúzia de livros e que adquiri num surto de consumismo impensado.

Já tinha tudo organizado: as velas e as pilhas em cima de uma mesa, a faca maior da cozinha, um jarrão de cristal d’arques, bem pesado, que herdei do tio Anselmo, o rolo da massa e uma esfregona, em cima do psiché, e com os rolos de papel higiénico, cobri os vãos das 4 janelas cá de casa, para segurarem as balas.

Faltava decidir o que fazer com tanto brócolo que habitava no meu congelador há vários meses e os pasteis de bacalhau que certamente os iria comer crus nas próximas horas, sem fritura… ,

…quando o apagão se desapagou, eram 20 horas.

E afinal não foram os russos, mas os chineses, que já são donos disto tudo.

Publicado em NVR 07|05|2025

"MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS VONTADES" - Luís Vaz de Camões



Voz: Anabela Quelhas


Música: 

https://www.youtube.com/watch?v=Xc_fMCp36mI

Imagem Camões: Pedro Arroja e Mário Santos

04 maio, 2025

LIGAÇÃO INCONDICIONAL

 


Sem mimimis, sem ses, sem intervalos, sem pausas, sem secundarização, sem porquês, sem condições, sem circunstâncias, sem no entantos, sem porém, sem um dia sem saber o como, o porquê e o que será. Sempre em paralelo. Sempre presencial. Sempre perto. Sempre juntos. Sempre unidos. Sempre ligados. Sempre integral, identidade e pertença. Sempre infinito. Sempre em tempestade e em bonança, sempre com ventos e marés, sempre luz e fogo, sempre um porto de abrigo. Sempre cúmplices, em que um olhar se entende sem palavras.