09 outubro, 2024

Sobre a obra MORRO DA PENA VENTOSA

 Sobre a obra MORRO DA PENA VENTOSA


 

Já não sei se dediquei algum “Revoltando” a um livro. Desta vez é obrigatório que o faça. Comprei o livro “Morro da Pena Ventosa” de Rui Couceiro, sensibilizada pela publicidade e atendendo à indicação da minha amiga Fátima P.

Esta obra é uma declaração de amor à cidade do Porto, mais especificamente, ao morro da Pena Ventosa, ou seja, a parte mais antiga da cidade, o morro onde se localiza a Sé do Porto e a Muralha Sueva.

Eu, sendo órfã de terra, converti-me em cidadã sem terra ou do mundo, como me queiram entender, e perante tamanha carência, a cidade do Porto acolheu-me e adoptou-me há muitos anos e por isso, a minha apreciação está carregada de afectos e de identidade com aqueles espaços e com o perfil de muitos tripeiros.

Rui Couceiro consegue escrever uma obra perfeita e bela, que fascina o leitor do princípio ao fim. Para quem conhece bem a cidade do Porto este livro enche-nos as medidas. Para quem não conhece, constitui um grande estímulo para o conhecer. A sua narrativa leva-nos aos sítios, lugares e às gentes, mediante um realismo mágico, atento e observador, forte em emoções. Senti-me personagem da obra, ora refrescando a minha memória, ora consultando informação já esquecida. Os assuntos são diversos e actuais: a morfologia da cidade, com os seus rios subterrâneos invisíveis, a transformação urbana recente provocada pelo turismo, as alterações dos imóveis, a transferência de população para a periferia, a mudança de hábitos, os problemas ambientais que estão na ordem do dia, as paixões, os afectos, os nossos fantasmas, as utopias e os recursos psicológicos para podermos sobreviver num século XXI, por vezes agreste e desumanizado.

A história da cidade está sempre presente, assim como ela se liga ao território e a quem o habita.

Há dois momentos que devo destacar, o primeiro realista e chocante para os mais ingénuos, e o segundo fantástico, mas premonitório.

O primeiro relaciona-se com a descrição do sítio escondido e clandestino, onde as mulheres se dirigiam, de qualquer classe social, para abortar, quando a interrupção voluntária da gravidez era proibida. É uma descrição realista, sórdida e arrasadora, que impressiona qualquer mente. O drama vivido por muitas mulheres e a solução tão fria e desumana a que eram submetidas, localiza-se há menos de vinte anos. Merece reflexão.

O segundo é a forma fantasiosa que Rui Couceiro utiliza para descrever a absoluta dependência da cidade, do rio Douro, transportando-nos para um dia, ficcionado, com situação calamitosa, em que o rio seca, e apenas resta a fenda abrupta do seu leito em que chega a ter quarenta metros de profundidade, com tudo o que ele arrasta. Evidência para a entre-ajuda e resiliência, das suas gentes, que nunca se conformam com injustiças, determinadas perante este novo desafio de voltar a encher o seu rio, nem que seja com garrafões de água transportada de outros lugares.

Aconselho um ler sem pressa e deixe-se levar pelas palavras, iniciando-se com um realismo desconcertante e terminando com uma narrativa ficcionada que nos traz conforto ao coração. Ao aproximar-se do fim, irá ler ainda mais devagar, para atrasar o fim, e no final certamente olhará para a cidade do Porto com outro olhar.

Transcrevo um minúsculo excerto, entre muitos, que me pôs a sorrir: ”(…) dizia-se que namorava com um feijão-verde, ou seja com um militar do exército, que tinha a cara em obras e andava sempre sem cheta, razão pela qual a velha Cacilda lhe dizia que o rapaz não valia um chavelho.(…)”  

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