05 outubro, 2024

Madame Lamy

 




Madame Lamy

Iniciava o curso liceal, com dez aninhos feitos em Março ia para o liceu a pé com duas colegas. O percurso de 2km, aproximadamente, fazia-se a pé, atravessando ruas e avenidas no meio da mancha urbana de Luanda, debaixo de um calor tórrido. As aulas começavam a meio de Setembro, às 13h e eu saia de casa por volta das 12h30, com uma bolsa a tiracolo cheia de livros e cadernos das aulas do dia.

Madame Lamy era a professora de Francês, senhora com mais de 50 anos, muito simpática, sempre cheia de calor, que transportava leques e abanicos, e que se penteava à anos 60, com o cabelo apanhado em coque, mais conhecido por banana. A meio de Outubro, já andávamos a aprender o verbo être,  je suis, tu es, il est, nous sommes, vous êtes, ils sont… cruzámo-nos no mesmo elevador do edifício gigante onde vivíamos, sem sabermos que eramos vizinhas.

- Vais para o liceu?

- Vou, Madame.

- A pé?

- Sim Madame.

- Então podes ir sempre comigo de carro, a esta hora. Não precisas de apanhar todo este calor.

- Merci beaucoup Madame, mas tenho duas colegas à espera que vão comigo. A Leo e a Graça.

- Do 1º C? Não tem problema, três ainda cabem no carro.

Fui chamar as minhas colegas e fomos para o estacionamento. Não sabia qual era o carro da Madame Lamy, desconhecia que ela morava naquele edifício. Ela esperava-nos junto a um Volkswagem preto, apenas de duas portas, que tinha uma tabuleta com as iniciais MG (Ministério da Guerra), junto à matrícula, e estava um “impedido” chofer fardado junto à viatura.

- Cabo Aloísio, estas meninas vão connosco.

Cabo Aloísio delicadamente abriu a porta da direita e descaiu o banco da frente, entraram primeiro a Leo e a Graça, depois Madame Lamy para o banco traseiro, Cabo Aloísio, ajustou o banco e eu sentei-me à frente. Fechou a porta, fez um ligeiro sinal de bater de pés, sem continência, deu à volta ao carro e sentou-se no banco ao volante.

- Pode seguir Cabo Aloísio, está tudo em ordem.

Seguimos confortáveis, a primeira vez um pouco intimidadas com toda esta cerimónia, mas a Madame logo nos tranquilizou.

- Cabo Aloísio tem esta tarefa de me transportar para  o Liceu. Quando o Sr. General está cá também o transporta para as tarefas dele, que têm prioridade. Sintam-se à vontade o Cabo Aloísio é muito prestável e homem de confiança do Sr. General, é um cavalheiro. Não vos posso trazer no final das aulas, porque saio mais cedo, mas podemos sempre ir juntas.

- Muito obrigada, Madame.

Cabo Aloísio era uma espécie de Ambrósio, ao serviço da guerra colonial, sem Ferreros Rocher, mas com muita pinta.

Passado uns dias, já brincávamos com o Cabo Aloísio, enquanto a Madame não descia, porque afinal ele só tinha mais 10 anos do que nós.

- Bonjour Madame- cumprimentávamos a Madame com um beijinho, e depois o percurso era feito sempre com boa disposição.

 Madame perguntava-nos sobre os estudos e sobre as brincadeiras, e ria-se da nossa partilha genuína, por vezes traçada com pormenores caricatos que a faziam rir.

- Contem-me outra vez aquela aventura com o picolé e o jacaré! E a revista Salut Les Coupins já está à venda? Sim... o Alain Delon é o mais bonito de todos!...

Madame Lamy, iniciou-me na língua francesa e semeou o interesse e o conhecimento que ainda tenho hoje sobre a língua e cultura francesas, e por Paris – Madame continua no meu coração, merci beaucoup.

Dia do professor, 5/10/2024

In “Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado” de Anabela Quelhas

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