15 novembro, 2023

Anónimos (4)

 


Anónimos (4)

Cruzo-me com elas no corredor do hospital, com bata azul e não usam estetoscópio ao pescoço. Arrastam um balde e uma esfregona sobre o pavimento de linóleo azul ou de marmorite, rematado por um rodapé de plástico, colocado a trouxa moucha, sem grandes preocupações estéticas, a dobrarem esquinas de forma pouco rigorosa. Revestimentos de diferentes famílias foram aplicados com se nunca ninguém olhasse para eles, fruto da desatenção do responsável pela construção do edifício, que desconsiderou que nos hospitais não pode haver ângulos onde se acumulam sujidade e toda a comunidade de vírus e bactérias.

Elas passam a esfregona, que foi crescendo, até atingir a dimensão de cerca de 95 centímetros da largura. Aquela plataforma de limpeza vai deslizando por aqui, por ali, dando a aparência de piso higienizado. Desinfectado já não digo, porque me parece que a maioria das vezes o piso apenas se molha e a sujidade troca de lugar com a sujidade vizinha, e vai estacionando nos rodapés que deveriam ser inexistentes sobre remate circular, até que a esfregona se levanta, encolhe e mergulha num balde que contém água e detergente líquido, adquirido aos quilolitros, sempre com o mesmo cheiro. Desconheço-lhes o nome, a idade, o seu contracto de trabalho. Ninguém lhes liga, ninguém fala com elas, apenas pisamos as superfícies que acabaram de limpar, sem qualquer reactividade por parte delas. Parecem autómatos, sem coração, nem alma, a percorrer centenas de metros quadrados de corredores, enfermarias e gabinetes. Quando chegam ao fim, voltam ao princípio, num percurso sem fim. O seu trabalho nunca está concluído e isso parece não incomodar a sua apatia crescente.

Quantas serão?

O que sentirão num serviço tão cheio e tão monótono?

Quantas horas estarão em pé?

Alguém sabe o seu nome?

Há alguém que lhes ofereça um sorriso?

Parece que fazem parte das infraestruturas hospitalares, parecidas com a canalização, as condutas de água e de ar condicionado, mas são pessoas, são mulheres, com idade, com família, com filhos e com o seu mundo de complexidades semelhante ao nosso. Não são robots, não são mecanismos com porcas e parafusos, nem mesmo com chips programados para esta função.

Algum dia usufruíram de alguma gentileza?

Ouvem as palavras mágicas, obrigada, com licenças, por favor, desculpe, bom dia, até já?

Alguém se importa com elas quando ficam doentes?

Sabemos quanto ganham num mês de arrasta e limpa?

E elas continuam naquela tarefa impessoal, por aqui, por ali… Para elas também deve ser indiferente com quem se cruzam, se são velhos ou novos, se chegam adiantados ou atrasados, se estão internados ou se estão na urgência com um AVC.

Esta é uma das muitas facetas da desumanização da nossa sociedade, atribuindo indiferença à dor e sentimentos dos seres humanos. É a falta de empatia entre seres humanos fisicamente próximos, não se comovem ou não se indignam.

Os motivos são diversos, as circunstâncias, individuais e sociais, existentes são ignoradas e as pessoas tornam-se cada vez mais distanciadas da “essência” da chamada condição humana.

Publicado em NVR, 15/11/2023

1 comentário:

Carlos Té disse...

Mais um tema interessante