28 junho, 2023

Anónimos com nome [2]

Anónimos com nome [2]

 

Cumpri a trilha dos fornos de cal de Campanhó.

Passado o Alto Velão vira-se à esquerda, e segue-se em direção a Campanhó – estrada de montanha estreita, sinuosa, sempre com curvas em U, que é necessário calma e cautela na condução. A paisagem é fabulosa e perigosamente receptiva a um despiste.

Já me tinha perdido outras vezes para chegar lá. Desta vez, consegui chegar ao sítio. Um dos fornos está muito bem conservado e com acesso fácil, outros, merecem uma limpeza de vegetação espontânea.

A cal viva reage violentamente com a água, gerando grande quantidade de calor, o que dificulta o seu transporte por barco ou por terra, considerando as condições atmosféricas. Assim, era mais fácil transportar o calcário, que é quimicamente estável, e fazer localmente a calcinação, recorrendo a estes fornos alimentados a lenha.

Para quem sabe interpretar:

CaCO3 + calor → CaO + CO2

Os fornos eram quase sempre cilíndricos, que acolhiam as pedras de calcário (no local disseram que eram de “mármore cinza”) e através de uma abertura na parte inferior do forno, seria onde se colocava lenha a arder, assegurando um processo de cozedura de 800 a 1000 graus. O topo do forno, aberto, evitaria a formação de vapor que estragaria a cal viva. O processo durava 6-7 dias.

Resultavam pedras transformadas pela temperatura, denominada cal viva, sendo cuidadosamente retiradas, após o arrefecimento e utilizadas não só para caiar como para fazer calda bordalesa para eliminar o míldio das videiras.

Se algo corria mal na queima, por exemplo, o excesso da temperatura, produzia a cal não reactiva, designada pelos caleiros como "cal queimada", que já passou do ponto. Não havia termómetros, para aferir a temperatura, o controle era feito pela cor do fumo, mais escuro ou mais branco.

Nestes fornos trabalharam muitas pessoas, homens, mulheres e crianças, algumas ainda na barriga das mães. A idade laboral iniciava-se quando conseguissem transportar pedras dentro de uma cesta ou à cabeça. Terão nascido assim os caleiros, profissão destes anónimos com uma vida inteira dedicada à transformação da cal. Não tinham seguros, nem protecções, que evitassem queimaduras graves, nem luvas, nem botas, nem viseiras; não tinham férias, não tinha dias feriados, não tinham nada, apenas, mãos, força e o vazio no estomago. As noites sucediam-se aos dias e a lenha tinha que estar sempre a arder; um trabalho duro de partir pedra, carregar lenha, vigiar o forno. Lidar com cal criava lesões à pele e aos olhos - queimaduras, comichões, alergias – todas elas mais suportáveis do que a fome.

Quantas paredes foram caiadas por esta região? Caro leitor alguma vez pensou nesta gente anónima, que ano após ano em troca de um salário miserável trabalhava noite e dia, naqueles fornos da brancura? Entre o fogo e o sofrimento caiavam-se paredes. De quem eram as mãos calejadas e queimadas que estavam na base deste processo de transformação? Nunca ninguém registou o sofrimento ao longo da história que remonta os 14.000 mil anos, com destaque em várias sociedades da Antiguidade. O processo, sempre igual, o fogo e a fome, que anula a identidade de todos.

Publicado em NVR, 28/07/2023





 

Sem comentários: