03 fevereiro, 2021

O SILÊNCIO DO KISANJI - análise - parte 1

 


Questiono-me sobre a legitimidade da minha apreciação, sendo eu um dos personagens implícitos, inclusive fazendo parte do rol de anónimos a quem a autora também dedica o livro, hesitei.

 Contudo, a honestidade da narrativa, obriga-me ao distanciamento do meu personagem, colocando-me na posição de leitor anónimo e descomprometido. Acto dificílimo, tratando-se de Luanda, cidade lar e terra onde pertenço.

A apresentação gráfica facilita a leitura não faltando apontamentos, em rodapé. de informação histórica que enquadram a narrativa no tempo e, em simultâneo, ajudam a entender a sequência do texto.

Uma nota especial para os salpicos de poesia com os quais Anabela Quelhas, em nome próprio ou sob pseudónimo, vai entrecortando a prosa.

 Estamos perante uma estória de amor e, profundo. Amor pela terra onde nasceu, de onde saiu e a ela em menina, regressou para de lá ser “tirada” contra vontade, já quase mulher.

 Com o som de um Kisanji como música de fundo, a estória vai sendo contada, sempre na primeira pessoa, recorrendo muitas vezes à linguagem que então se usava, sobretudo entre a juventude, que sendo uma estória de amor, recusa, no entanto, a banalidade dos enredos e detalhes, técnicas pobres de escrita a que alguns recorrem para prender o leitor. Não obstante, é difícil não a lermos de seguida até ao fim.

 Sem complexos nem estigmas, a criança que cresce e desperta para o mundo que a rodeia, questionando-o, conta a vida e as estórias da cidade, através das suas vivências, nunca perdendo a noção que a sua cidade não era igual à de todos e que nas outras cidades ali ao lado da sua janela, os sonhos eram outros e as vidas muito mais difíceis.

 Os personagens sucedem-se ao ritmo do crescimento e com eles vêm os locais e os viveres de uma geração, a última da época colonial, a lá ter nascido.

 A escritora, usa os olhos da menina que se fez jovem, para contar a cidade, recorrendo~se da mulher arquitecta. Aprendemos com ela, ao confrontarmos as memórias que guardámos, com as interpretações e leituras da mulher, arquitecta e escritora.

 Sem parar a narrativa de uma vida, vai-nos lembrando que havia guerra e que jovens portugueses eram forçados a ir para lá combater outros jovens, que apenas queriam o país que lhes pertencia.

 ” Há algo que paira no ar, que todos respiramos, um pulsar de uma terra inebriante, que gera entusiasmos, sonhos, vontade de vencer e nos injecta diariamente uma dose elevada de otimismo e adrenalina.”

 Eis a frase que brilhantemente descreve o sentimento inocente de toda uma sociedade “branca” que fervilhava naquela cidade, no decorrer dos anos 60 e 70. O sonho de um futuro.

 A história dos homens leva ao final da narrativa da estória de vida da menina que cresceu e chegou a adolescente, sempre a questionar.

 Ao terminar a autora não se esquece dos dramas vividos por muitos, tantos, que foram quase todos os que de um dia para o outro tiveram ou decidiram largar uma vida, deixando os sonhos do futuro nas casas fechadas, nas fábricas e fazendas abandonadas, nas viaturas estacionadas à porta de uma lar e de uma vida onde jamais voltariam.

 “A noite está calma, já há pouco movimento na rua. Cada um pega na sua mala, lança um olhar pelo espaço que nos acolheu vários anos, com móveis e os quadros no seu lugar, como se fossemos apenas de férias – tudo arrumado, toalhas limpas nos toalheiros, frigorífico ligado, filtro de água, persianas corridas para evitar o Sol, tapetes no chão a testemunhar a nossa despedida.”

 Por questionar em pequena a mulher adulta entende o passado e respeita presente. Percebe-se ao longo da narrativa que, como tantos outros, Anabela Quelhas nunca de lá saiu.

 3 de Fevereiro de 2021

João Pedro Fonseca


1 comentário:

R, Figueiredo disse...

5 estrelas
Parabéns pela análise.