11 fevereiro, 2021

TATTOO

Tatoo

              Ainda não consegui fazer tatuagens. Decidir por algo tão definitivo, perturba-me, já que tenho consciência, que vivemos num mundo em mudança permanente e rápida e eu, mudo ainda mais rápido do que o mundo.

              A tatuagem parece ser um relato de vida, utilizando como meio de expressão, tinta aplicada num suporte vivo, a pele humana. A sua origem perde-se no Antigo Egipto. Na civilização ocidental  moderna chega-nos através dos marinheiros ingleses, os lobos-do-mar, com as suas aventuras registadas em forma de monstros marinhos, esqueletos, caveiras, testemunhando a sua coragem e bravura, até ao ponto de resistirem a marcas violentas realizadas propositamente sobre a pele. Esta forma de expressão aparece nos sítios que estes marinheiros frequentam, normalmente tabernas, prostíbulos, pensões baratas e passa a conectar-se negativamente, como uma opção marginal.

              Só no final do século XX é que a tatuagem ultrapassa as barreiras do preconceito e passa a ser símbolo de rebeldia, ousadia e de contestação, seguido de registo de vanguarda do mosaico de identidade personificado de uma faixa juvenil e finalmente adoptado como opção de expressão subjectiva de homens e mulheres com mais idade. Começa com a marca da guerra colonial, que muitos gravam antes de partir, “amor de mãe”, “Amo-te Gabriela”. “Comandos na Guiné 1967/1969” e hoje assume contornos artísticos conhecidos como Tattoo.

              O desenho narrativo utilizado é legível pelo próprio, e também pelos outros, atrevendo-me até a afirmar, que a leitura dos outros é mais frequente do que a do próprio, já que se converte em presença constante na comunicação visual. A tatuagem que efectivamente tem uma mensagem, pouco ou nada significa para o receptor, “O outro”. “O outro”, o que lê? Lê uma área da pele, que contém um desenho nem sempre esteticamente criativo, com uma linguagem que nem todos entendem, nem querem entender, devido à matiz pessoal. Comparo uma tatuagem ao código de barras que alguém possa a imprimir na pele, ao tele-texto a passar na nossa testa, ou seja, uma exposição da intimidade de cada um, como se vestíssemos um manto da nossa verdade imutável, numa época em que todos querem preservar a sua intimidade, proteger os seus dados e a sua imagem. É no mínimo contraditório.

              A maturidade permite-me reflectir um pouco sobre as consequências, porque está mais do que provado, que este pormenor atrapalha por vezes as perspectivas de trabalho dos jovens, e que com o andamento da vida, deixamos de gostar das mesmas coisas e aquilo que foi sobrevalorizado numa época, não tem qualquer importância na outra, levando ao arrependimento sobre o acto.

              Começa sempre pela aplicação de um pequeno símbolo escolhido em catálogo, porque a imaginação não dá para mais, em local especial, que fica em destaque e depois torna-se quase viciante cobrir a pele com outras divagações pictóricas, já mais bem pensadas, numa geografia inestética inconsciente e frequentemente em desiquilíbrio entre a figura e o fundo. Seja qual for o suporte, a arte equaciona diversos parâmetros, que poucos sabem equilibrar.

              Alerta: em 2016 existiam 60 milhões de tatuados no mundo, entre os 18 e os 35 anos em que, 7,5 milhões estariam seriamente arrependidos de se ter tatuados. Uns, por motivos de saúde - complicações resultantes de infecções, irritações crónicas e queimaduras, efeitos a longo prazo no seu sistema imunológico, ausência de condições ideais para realizar radioterapias e outras terapêuticas impossíveis de prever – outros, porque já não se identificam com aquelas marcas da pele, que viraram a sua sombra eterna.

              O número de pessoas tatuadas cresce, esta postura virou moda, e os serviços de remoção com laser, nem sempre bem-sucedidos, crescem também, registando o descontentamento de muitos, deste acto altamente agressivo para a nossa pele.

              Este vínculo inapagável, pode também representar não amar o nosso corpo, distraindo a visão com a ilusão gráfica.

              Eu detestaria olhar diariamente para um grafismo ou um símbolo, que passados anos, eu quero esquecer e não lembrar, composições gráficas que adorei antes, e hoje acho obsoletas e ridículas. Andar vestida sempre com a mesma roupa, para mim, já não é bom, e deprime-me, mas ter uma roupa interior que nunca conseguiria despir, seria traumatizante, pouco sensual e pouco poético. Seria transportar grilhetas a prenderem-me continuamente ao passado, não me permitindo evoluir como pessoa e viver a dialéctica do meu mundo interior, sempre em contínuo desconforto, limitando a minha liberdade. O meu corpo será sempre uma tela cheia, naturalmente mutável, sem grafismos redutores.

              Alguns dirão que há situações que valem para eternidade justificando uma boa tatuagem, e eu diria que nada é eternamente válido sob a mesma forma visual.

              Maneiras de pensar.

Publicado em NVR 10/02/2021

6 comentários:

Ana André disse...

Excelente tezto!

Ana André disse...

Excelente texto! Concordo! *Grafismos redutores e voláteis... o nosso corpo é um templo sagrado e de crrta forma estamos a profaná-lo ao fazer nele uma tatuagem! Por isso não sou capaz de tatuar o meu!

Ana André disse...

Excelente tezto!

Ana André disse...

Excelente tezto!

Anabela Quelhas disse...

Grata, Ana André.

Rui Esteves disse...

concordo com tudo, este novos temas que trazes para o jornal são muito interessantes.
1 Xi <3