Agostinho da Silva, um poeta à solta
“Não há liberdade minha, se os outros a não têm.”
Apesar de me considerar
uma pessoa atenta, o meu primeiro contacto com Agostinho da Silva foi através
da televisão - no programa “Conversas Vadias”, transmitido pela RTP1 em 1990,
quando ele já tinha 84 anos. O nome do programa era apelativo e inspirador e de
imediato captou a minha atenção. Este programa estruturava-se numa simples
entrevista a Agostinho da Silva, realizada por várias personalidades a saber, Maria Elisa, Adelino Gomes, Joaquim Letria, Alice Cruz, Baptista Bastos, Herman
José, Miguel Esteves Cardoso, Manuel António Pina, Joaquim Vieira, Maria Isabel
Barreno, Cáceres Monteiro e Fernando Alves. Totalizaram treze entrevistas. Estas
sessões televisivas tornaram-se imediatamente populares, devido à actualidade daquilo
que partilhava esta singular figura e do seu pensamento.
Quem era o estranho individuo
que todos queriam entrevistar e só eram seleccionados entrevistadores de
gabarito, personalidades conhecidas do meio artístico, literário e académico,
nacional, que só eles já despertariam o interesse aos telespectadores?
George Agostinho
Baptista da Silva, nasceu na freguesia de Bonfim, na cidade do Porto a 13 de
Fevereiro de 1906, foi um filósofo, pedagogo, poeta e ensaísta português.
Apontado como um dos grandes pensadores portugueses do século XX, conhecido pelas
suas reflexões sobre a educação, a liberdade e a identidade cultural.
Realizou um percurso
académico notável e excepcional, Agostinho da Silva concluiu a licenciatura em
Filologia Clássica, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com 22
anos e o doutoramento com 23, ambos com 20 valores. Esteve em Paris como
bolseiro onde, desenvolveu estudos na Sorbonne e no Collège de France. Foi colaborador
da revista Seara Nova até 1938, conferindo-lhe um “péssimo currículo” para
trabalhar no ensino superior, durante o Estado Novo; foi professor no ensino
secundário em Aveiro, até ao ano de 1935, altura em que foi demitido do ensino
oficial por se recusar a assinar a Lei Cabral, que obrigava todos os
funcionários públicos a declararem por escrito, que não participavam em
organizações secretas (e como tal subversivas). No mesmo ano, conseguiu uma
bolsa do Ministério das Relações Exteriores de Espanha e foi estudar para o
Centro de Estudos Históricos de Madrid. Em 1936 regressou a Portugal por estar
eminente a Guerra Civil Espanhola.
Foi preso pela polícia
política em 1943, ficando 18 dias no Aljube e obrigado a residência fixa. Em
1944, Agostinho da Silva imigrou para a América do Sul, naturalizou-se
brasileiro em 1959 e regressou a Portugal em 1969 após a doença e morte de
Salazar e a sua substituição por Marcelo Caetano. Desde essa data, já
aposentado como professor universitário no Brasil, continuou a dedicar-se à
escrita e dirigia paralelamente o Centro de Estudos Latino-Americanos da
Universidade Técnica de Lisboa e desenvolvia consultadoria do actual Instituto
Camões. Em 1992 retomou a nacionalidade portuguesa e faleceu a 4 de Abril 1994.
Este Agostinho da Silva
que conheci pela televisão apresentava-se ancião activo, vestido com
simplicidade e informal, tal como era o seu discurso fluído, mas que emanava
profundo conhecimento erudito sobre o Homem e a sociedade. Ouvi-lo era
desafiante, multidimensional, surpreendente e transformava sempre algo em nós –
hoje dir-se-ia que era um grande “influencer”. A sua personalidade
manifestava-se polifacetada, ousada, acutilante, perspicaz e desconcertante,
por isso atraia ouvintes de todas as idades. Apresentava uma retórica
argumentativa, sabiamente alimentada pela perspicácia e por uma fina ironia,
que inquietava, desafiava e mobiliza para a mudança.
A entrevista,
considerada mais impactante e memorável, é a conversa com Adelino Gomes, sobre
a Liberdade e o Destino, que acabei de rever e motivou-me para a escrita deste
texto, porque continua surpreendente e interessante o seu pensamento sobre a
liberdade, Camões, Padre António Vieira... As entrevistas podem se visionadas
na RTP arquivos e todos deveriam conhecer ou rever.
Uma das suas principais
contribuições filosóficas é a ideia de que a educação deve ser um processo de
libertação e auto-conhecimento, enfatizando a importância do desenvolvimento
integral do ser humano. Ele acreditava que a verdadeira sabedoria vem da
experiência e do diálogo, e não apenas da acumulação de conhecimentos académicos.
Ao nível da Educação, na sua essência, a obra científica e magistral de
Agostinho da Silva assenta numa mesma matriz conceptual e alinha por um mesmo
sentido: o do compromisso com a vida, com a humanidade e com a pessoa.
A vida de boémio, que
levou no Brasil, muito contribuiu para que descuidasse as suas
responsabilidades parentais, e o levasse a ter filhos que acabaram por ficar
registados no bilhete de identidade com pai incógnito.
Curiosamente a sua segunda
companheira, Judith Cortesão era filha de outra figura ilustre da literatura,
Jaime Cortesão. Desta relação resultaram 8 filhos, dois deles adoptados.
Sobre a sua obra já não
teremos tempo para a ler toda, pela dificuldade da recolha e pela extensão da
mesma. Publicou mais de duzentos títulos em Portugal e no Brasil e centenas de
Cadernos de Divulgação Cultural. A sua filosofia saiu do universo dos livros,
dos ensaios e dos grandes eixos culturais e proliferou em palavras, conversas, debates,
reflexões e dissertações, enriquecendo de forma activa, presente e dialogante, a
lusofonia. Vejam ou revejam as “Conversas Vadias”.
Faz parte da memória de
muitos, esta frase: “o homem não nasce para trabalhar, nasce para criar, para
ser o tal poeta à solta". Hoje gostaria de poder ouvir Agostinho da Silva
a dissertar sobre a Educação/ Internet e sobre esta Guerra, que está a pôr a
Europa confusa e disruptiva.
Publicado em NVR 23|04|2025
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