23 abril, 2025

Agostinho da Silva, um poeta à solta

 

Agostinho da Silva, um poeta à solta

“Não há liberdade minha, se os outros a não têm.”

Apesar de me considerar uma pessoa atenta, o meu primeiro contacto com Agostinho da Silva foi através da televisão - no programa “Conversas Vadias”, transmitido pela RTP1 em 1990, quando ele já tinha 84 anos. O nome do programa era apelativo e inspirador e de imediato captou a minha atenção. Este programa estruturava-se numa simples entrevista a Agostinho da Silva, realizada por várias personalidades a saber, Maria Elisa, Adelino Gomes, Joaquim Letria, Alice Cruz, Baptista Bastos, Herman José, Miguel Esteves Cardoso, Manuel António Pina, Joaquim Vieira, Maria Isabel Barreno, Cáceres Monteiro e Fernando Alves. Totalizaram treze entrevistas. Estas sessões televisivas tornaram-se imediatamente populares, devido à actualidade daquilo que partilhava esta singular figura e do seu pensamento.

Quem era o estranho individuo que todos queriam entrevistar e só eram seleccionados entrevistadores de gabarito, personalidades conhecidas do meio artístico, literário e académico, nacional, que só eles já despertariam o interesse aos telespectadores?

George Agostinho Baptista da Silva, nasceu na freguesia de Bonfim, na cidade do Porto a 13 de Fevereiro de 1906, foi um filósofo, pedagogo, poeta e ensaísta português. Apontado como um dos grandes pensadores portugueses do século XX, conhecido pelas suas reflexões sobre a educação, a liberdade e a identidade cultural.

Realizou um percurso académico notável e excepcional, Agostinho da Silva concluiu a licenciatura em Filologia Clássica, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com 22 anos e o doutoramento com 23, ambos com 20 valores. Esteve em Paris como bolseiro onde, desenvolveu estudos na Sorbonne e no Collège de France. Foi colaborador da revista Seara Nova até 1938, conferindo-lhe um “péssimo currículo” para trabalhar no ensino superior, durante o Estado Novo; foi professor no ensino secundário em Aveiro, até ao ano de 1935, altura em que foi demitido do ensino oficial por se recusar a assinar a Lei Cabral, que obrigava todos os funcionários públicos a declararem por escrito, que não participavam em organizações secretas (e como tal subversivas). No mesmo ano, conseguiu uma bolsa do Ministério das Relações Exteriores de Espanha e foi estudar para o Centro de Estudos Históricos de Madrid. Em 1936 regressou a Portugal por estar eminente a Guerra Civil Espanhola.

Foi preso pela polícia política em 1943, ficando 18 dias no Aljube e obrigado a residência fixa. Em 1944, Agostinho da Silva imigrou para a América do Sul, naturalizou-se brasileiro em 1959 e regressou a Portugal em 1969 após a doença e morte de Salazar e a sua substituição por Marcelo Caetano. Desde essa data, já aposentado como professor universitário no Brasil, continuou a dedicar-se à escrita e dirigia paralelamente o Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Técnica de Lisboa e desenvolvia consultadoria do actual Instituto Camões. Em 1992 retomou a nacionalidade portuguesa e faleceu a 4 de Abril 1994.

Este Agostinho da Silva que conheci pela televisão apresentava-se ancião activo, vestido com simplicidade e informal, tal como era o seu discurso fluído, mas que emanava profundo conhecimento erudito sobre o Homem e a sociedade. Ouvi-lo era desafiante, multidimensional, surpreendente e transformava sempre algo em nós – hoje dir-se-ia que era um grande “influencer”. A sua personalidade manifestava-se polifacetada, ousada, acutilante, perspicaz e desconcertante, por isso atraia ouvintes de todas as idades. Apresentava uma retórica argumentativa, sabiamente alimentada pela perspicácia e por uma fina ironia, que inquietava, desafiava e mobiliza para a mudança.

A entrevista, considerada mais impactante e memorável, é a conversa com Adelino Gomes, sobre a Liberdade e o Destino, que acabei de rever e motivou-me para a escrita deste texto, porque continua surpreendente e interessante o seu pensamento sobre a liberdade, Camões, Padre António Vieira... As entrevistas podem se visionadas na RTP arquivos e todos deveriam conhecer ou rever.

Uma das suas principais contribuições filosóficas é a ideia de que a educação deve ser um processo de libertação e auto-conhecimento, enfatizando a importância do desenvolvimento integral do ser humano. Ele acreditava que a verdadeira sabedoria vem da experiência e do diálogo, e não apenas da acumulação de conhecimentos académicos. Ao nível da Educação, na sua essência, a obra científica e magistral de Agostinho da Silva assenta numa mesma matriz conceptual e alinha por um mesmo sentido: o do compromisso com a vida, com a humanidade e com a pessoa.

A vida de boémio, que levou no Brasil, muito contribuiu para que descuidasse as suas responsabilidades parentais, e o levasse a ter filhos que acabaram por ficar registados no bilhete de identidade com pai incógnito.

Curiosamente a sua segunda companheira, Judith Cortesão era filha de outra figura ilustre da literatura, Jaime Cortesão. Desta relação resultaram 8 filhos, dois deles adoptados.

Sobre a sua obra já não teremos tempo para a ler toda, pela dificuldade da recolha e pela extensão da mesma. Publicou mais de duzentos títulos em Portugal e no Brasil e centenas de Cadernos de Divulgação Cultural. A sua filosofia saiu do universo dos livros, dos ensaios e dos grandes eixos culturais e proliferou em palavras, conversas, debates, reflexões e dissertações, enriquecendo de forma activa, presente e dialogante, a lusofonia. Vejam ou revejam as “Conversas Vadias”.

Faz parte da memória de muitos, esta frase: “o homem não nasce para trabalhar, nasce para criar, para ser o tal poeta à solta". Hoje gostaria de poder ouvir Agostinho da Silva a dissertar sobre a Educação/ Internet e sobre esta Guerra, que está a pôr a Europa confusa e disruptiva.

Publicado em NVR 23|04|2025

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