01 janeiro, 2024

Ensaios de escrita 24 - Reveillon

 


A mãe despacha o jantar, porque vamos na corrida de S. Silvestre. Eu não estou afobada, penso todos os minutos na farra de garagem que já começou mal acabou o pôr-do-sol. Meus kambas abriram a garagem, foram na fábrica do gelo, comprar gelo para encher 4 grandes tanques que vão servir de geleira para as birras e colas, para umas e outras geladérrimas, para esfriar o calor, a euforia e as hormonas aos saltos. Hoje a farra se estende para o exterior. Um kamba leva um e outros, mais sanguita daqui e a vizinha, e garagem só, não chega. As vedações do quintal se fecharam com folhas de palmeira e os mais habilidosos, estenderam cabos para ter luz em todo o lado.

Está muito calor, depois de uma chuveirada, visto blusa sem costas preta e calças La Finesse brancas, de boca de sino, com cinto de argolas douradas e as sandálias de pneu que me dão mais 5 anos de altura. Em cima dessas sandálias, passo dos 14 anos directamente para os 19, podendo entrar no cinema mais de 17 e até entrar na boite Adão, sem ninguém xingar. Coloco os meus anéis, as pulseiras douradas e negras e os colares de missangas coloridas. Passo um Madame Rochas atrás das orelhas. A mãe chama:

- A comida está na mesa, te despacha nesse quarto de banho!

Janto rápido, para ter tempo de estar no espelho, para passar mais uma escova de rimmel, a sombra fica para depois, porque o pai gosta de ver filha caçula com chipala ao natural. Meto na carteira a sombra azul, o spray Halazon, para disfarçar o cheiro das Negritas no regresso a casa, a escova do cabelo, porta moedas e o meu talismã.

Descemos à rua e vamos a butes até à Avenida Brasil, é só atravessar uma rua. A S. Silvestre já começou. Os passeios começam a encher. Me dizem que Carlos Lopes talvez passe na frente.

- Ué, falam de quem? Quem é esse muadiê? Só conheço Bernard Dzom.

Eu quero muito ver esse Carlos Lopes a correr na frente, mas ele nunca mais passa! Não sei onde é a partida, mas a meta é no Estádio dos Coqueiros. Na espera, viajo na imaginação para a farra que me espera, já estarão a passar o "Reflection of my life" ou "I put a spell on you"? Hum… a esta hora os rapazes devem estar a combinar, quem dança com quem, quem estica os slows no seu sinal, quando se dançará o "Je t’ aime, moi non plus"… já devem ter tudo organizado com o Cabeça de Ginguba no gira-discos.

Uf, começa-se a ouvir palmas e todos se esticam para ver passar Carlos Lopes. Fico a conhecer o tuga do Sporting da metrópole, que passa bem juntinho a mim. Muitos gritam palavras de entusiasmo. CARLOS LOPES! CARLOS LOPES!

Meus cotas não estão com pressa de regressar a casa e eu olho o relógio de pulso da mãe, várias vezes e finalmente, vamos no regresso.

Quem já estará na farra? Convenço a mãe a ir a casa buscar a minha multa (bolo de bolacha) e finalmente ir merengar, dançar sheik e slow… bem não é bem dançar slow, é mexer os pés sem sair do lugar, das músicas mais românticas que há no mundo, enquanto alguém desliga algumas luzes. Espero que ele esteja lá e me convide para dançar o slowzão, daqueles que duram para a eternidade, dá para ir da Corimba até Catete.

Alguns rapazes combinam com o Cabeça de Ginguba, se lhe piscam o olho direito é para esticar o slow, recuando a agulha para o início da música, para ficarem agarradinhos à miúda que gostam, muito mais tempo. Se algum ciumento piscar o olho esquerdo, é sinal  para a música avançar mais rápido e terminar antes do fim, para evitar que a miúda de quem gostam esteja muito tempo a dançar com outro manguela qualquer. Por vezes o Cabeça de Ginguba, baralha tudo e dá maka discreta, com ameaças, não bebes mais Cucas, ou com lamentos, estragaste-me a noite, pá! m'irmão afinal tás de qual lado mesmo? 

In “Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado” Anabela Quelhas 2024


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