22 março, 2023

Anónimos com nome [1]


 Anónimos com nome [1]

A chave não estava na carteira, tinha ficado no interior de casa, quando saí à pressa, bati a porta e pronto. Imaginei apelar para os bombeiros para entrarem por uma varanda localizada na traseira da casa, e partir um vidro, para depois conseguir aceder ao interior da mesma. O tempo para reparar o estrago e os euros a saírem da conta bancária, para substituir um vidro duplo de grandes dimensões, começaram também a ocupar o meu raciocínio, para além da estratégia sobre a forma de tapar, temporariamente, o buraco a fazer no vidro. Já eram quase dezoito horas de sexta-feira.

Telefonei para os bombeiros, depois das explicações necessárias, rapidamente chegaram à minha rua. Estranhei não trazerem o carro com escada para aceder a sítios altos. Entraram no quintal, nas calmas, mal ouvindo as sugestões que eu tinha para apresentar, sem considerar aquilo que eu ia falando, preocupada com a situação, temendo que esta não se resolvesse rápido e houvesse estragos maiores.

- A chave está por dentro na fechadura, ou não?

Parecia haver diferença. Sabia lá eu!!! Um dos bombeiros retirou do bolso das calças um cartão plastificado e fez as suas manobras de grande precisão, rapidamente diagnosticou que a chave estava no interior, na fechadura. Não conseguiram abrir a porta. Pensei que a opção dois, seria montar a escada para aceder à varanda. Enganei-me, a solução chamava-se Serafim (nome inventado agora), em versão anónima, que vivia a sua vida discretamente a destravar portas, a desvendar fechaduras e a desenrascar pessoas que, num repentemente, ficavam do lado de fora.

Ninguém gosta de ficar do lado de fora. Fica-se com a ideia de exclusão, como se ficássemos afastados de algo que parece importante, como se fosse uma área sombreada da vida, onde não pretendemos estar. Ficar do lado de fora, implica haver dois lados, e nós pretendemos estar dentro, neste caso, no aconchego do lar, no espaço onde habitamos, onde temos os nossos objectos pessoais, onde retornamos, todos os dias, pelo menos para descansar; o nosso espaço que consideramos seguro, para poder desligar, dormir, sem que nos vigiem, sem que nos ataquem, sem que ponham em risco a nossa segurança. Este processo de defesa, é o que verdadeiramente nos preocupa desde que o mundo é mundo – estar em segurança.

            Para Serafim, fechaduras não tinham segredos - trincos, linguetas, canhões, cilindros - nem de carros, nem de casas, nem de cofres. Alto, a rondar os cinquenta anos, com um olho meio pisco e mãos ágeis, demorava menos tempo a abrir uma porta sem chave, do que eu com a chave certa. Sem alarde, sem aparato, discretamente, tal como procedia na outra vida, chegava, e com qualquer coisa que transportava no bolso, fazia a magia de abrir o que permanecia encerrado. Só se deslocava aos domicílios, com conhecimento da polícia, com tudo bem identificado, para não haver problemas, nem para ele, nem para os seus clientes. Esteve detido várias vezes, até que resolveu transformar a sua arte, em profissão legal. Desconheço como se chama a sua profissão, se está catalogada no Ministério das Finanças, mas que dá jeito, dá. Foi Serafim quem abriu a porta num piscar de olhos, requerendo isolamento, porque não pretende ensinar nada a ninguém – foram muitos anos a investir nesta causa, de forma clandestina e com consequências penosas. Todos se afastaram, e olharam para o lado, enquanto Serafim explorava a anatomia da fechadura e recorrendo a parcos recursos, que eu também não vi, abriu a porta, sem arranhão, nem amasso.

            Outro dia qualquer, uma forte corrente de ar, empurrou quase todas as portas aqui de casa e uma delas bateu com tanta força e estrondo, que nunca mais abriu. Primeiro procurei pelos parafusos, que ficaram escondidos com a porta fechada, e depois em desespero de causa, experimentei o cartão plastificado e o gancho de cabelo sem norte, sem técnica e sem sucesso. Apresentava-se ali um serviço para o senhor Serafim, o meu anónimo “destrava fechaduras”, que sabe mais do que o engenheiro que as inventou e é mais rápido do que eu a procurar as chaves e a abrir as portas com as chaves certas. Neste caso uma porta interior, pensei que ele até se iria rir do serviço solicitado, bastaria tocar-lhe e com um clip resolveria o problema.

            Lá veio o Sr. Serafim, sempre conectado com a polícia, dizendo onde estava e com quem – o GPS da legalidade. Desta vez o diagnóstico foi mais complexo e saiu da minha previsibilidade.

            - Tenho que ir buscar uma “rebarbadeira”!

            - Credo vai-me destruir a porta?! Já não existe a carpintaria onde comprei as portas.

- Só lhe vou serrar o trinco e depois precisa trocar a fechadura.

- Peço-lhe, traga já a fechadura nova.

E tudo foi explicado pelo telemóvel para quem estava do outro lado a controlar. Ainda hoje, conservo o contacto deste anónimo, que merece a medalha do desenrascanço.

Anónimos com nome [1]

A chave não estava na carteira, tinha ficado no interior de casa, quando saí à pressa, bati a porta e pronto. Imaginei apelar para os bombeiros para entrarem por uma varanda localizada na traseira da casa, e partir um vidro, para depois conseguir aceder ao interior da mesma. O tempo para reparar o estrago e os euros a saírem da conta bancária, para substituir um vidro duplo de grandes dimensões, começaram também a ocupar o meu raciocínio, para além da estratégia sobre a forma de tapar, temporariamente, o buraco a fazer no vidro. Já eram quase dezoito horas de sexta-feira.

Telefonei para os bombeiros, depois das explicações necessárias, rapidamente chegaram à minha rua. Estranhei não trazerem o carro com escada para aceder a sítios altos. Entraram no quintal, nas calmas, mal ouvindo as sugestões que eu tinha para apresentar, sem considerar aquilo que eu ia falando, preocupada com a situação, temendo que esta não se resolvesse rápido e houvesse estragos maiores.

- A chave está por dentro na fechadura, ou não?

Parecia haver diferença. Sabia lá eu!!! Um dos bombeiros retirou do bolso das calças um cartão plastificado e fez as suas manobras de grande precisão, rapidamente diagnosticou que a chave estava no interior, na fechadura. Não conseguiram abrir a porta. Pensei que a opção dois, seria montar a escada para aceder à varanda. Enganei-me, a solução chamava-se Serafim (nome inventado agora), em versão anónima, que vivia a sua vida discretamente a destravar portas, a desvendar fechaduras e a desenrascar pessoas que, num repentemente, ficavam do lado de fora.

Ninguém gosta de ficar do lado de fora. Fica-se com a ideia de exclusão, como se ficássemos afastados de algo que parece importante, como se fosse uma área sombreada da vida, onde não pretendemos estar. Ficar do lado de fora, implica haver dois lados, e nós pretendemos estar dentro, neste caso, no aconchego do lar, no espaço onde habitamos, onde temos os nossos objectos pessoais, onde retornamos, todos os dias, pelo menos para descansar; o nosso espaço que consideramos seguro, para poder desligar, dormir, sem que nos vigiem, sem que nos ataquem, sem que ponham em risco a nossa segurança. Este processo de defesa, é o que verdadeiramente nos preocupa desde que o mundo é mundo – estar em segurança.

            Para Serafim, fechaduras não tinham segredos - trincos, linguetas, canhões, cilindros - nem de carros, nem de casas, nem de cofres. Alto, a rondar os cinquenta anos, com um olho meio pisco e mãos ágeis, demorava menos tempo a abrir uma porta sem chave, do que eu com a chave certa. Sem alarde, sem aparato, discretamente, tal como procedia na outra vida, chegava, e com qualquer coisa que transportava no bolso, fazia a magia de abrir o que permanecia encerrado. Só se deslocava aos domicílios, com conhecimento da polícia, com tudo bem identificado, para não haver problemas, nem para ele, nem para os seus clientes. Esteve detido várias vezes, até que resolveu transformar a sua arte, em profissão legal. Desconheço como se chama a sua profissão, se está catalogada no Ministério das Finanças, mas que dá jeito, dá. Foi Serafim quem abriu a porta num piscar de olhos, requerendo isolamento, porque não pretende ensinar nada a ninguém – foram muitos anos a investir nesta causa, de forma clandestina e com consequências penosas. Todos se afastaram, e olharam para o lado, enquanto Serafim explorava a anatomia da fechadura e recorrendo a parcos recursos, que eu também não vi, abriu a porta, sem arranhão, nem amasso.

            Outro dia qualquer, uma forte corrente de ar, empurrou quase todas as portas aqui de casa e uma delas bateu com tanta força e estrondo, que nunca mais abriu. Primeiro procurei pelos parafusos, que ficaram escondidos com a porta fechada, e depois em desespero de causa, experimentei o cartão plastificado e o gancho de cabelo sem norte, sem técnica e sem sucesso. Apresentava-se ali um serviço para o senhor Serafim, o meu anónimo “destrava fechaduras”, que sabe mais do que o engenheiro que as inventou e é mais rápido do que eu a procurar as chaves e a abrir as portas com as chaves certas. Neste caso uma porta interior, pensei que ele até se iria rir do serviço solicitado, bastaria tocar-lhe e com um clip resolveria o problema.

            Lá veio o Sr. Serafim, sempre conectado com a polícia, dizendo onde estava e com quem – o GPS da legalidade. Desta vez o diagnóstico foi mais complexo e saiu da minha previsibilidade.

            - Tenho que ir buscar uma “rebarbadeira”!

            - Credo vai-me destruir a porta?! Já não existe a carpintaria onde comprei as portas.

- Só lhe vou serrar o trinco e depois precisa trocar a fechadura.

- Peço-lhe, traga já a fechadura nova.

E tudo foi explicado pelo telemóvel para quem estava do outro lado a controlar. Ainda hoje, conservo o contacto deste anónimo, que merece a medalha do desenrascanço.

Publicado em NVR, 23/03/2023

2 comentários:

Anónimo disse...

Às vezes faz falta ter um Serafim na nossa vida, ou um António, por exemplo, não é o que diz a música “chama o António?”. É que o Serafim que eu conheço não vale um caracol.
Adília Martins 😃

anabelaquelhas disse...

kkkkkkk