20 julho, 2022

ÉS FELIZ?

 


ÉS FELIZ?

Sou escandalosamente atrevida, às vezes inconveniente, indo directa ao assunto e pergunto:

- És feliz?

No início surpreendia-me com a hesitação e a perplexidade que lia nos olhos dos inquiridos, pessoas maduras e experientes, como se a pergunta fosse um problema difícil de termodinâmica…, agora já estou atenta e à espera disso.

Após esta pergunta simples, parece que vejo o filme que passa no interior do meu interlocutor, que equivale à sua idade. Uma retrospectiva difícil de verbalizar, mas impossível de esconder, o desconforto e todas as contradições despertadas com esta pergunta tão simples.

Uma pergunta que queima.

A pergunta obriga-os a fazer uma auto-avaliação normalmente penosa, nos seus canais vivenciais, que ora se transforma em avenidas de êxtase, ora em ruas cheias de monotonia e rotinas, ora em becos cinzentos e sem saída. Tomam consciência da passagem do tempo, da descoloração da alma e a resposta que deveria ser verdadeira, por vezes não é. Vale o sim, vale o não, ambas são difíceis de exteriorizar. É difícil assumir que se fez más escolhas, que somos incapazes de nos renovar, de questionar e de mudar. Mudar é sempre muito difícil. A mudança não se adquire na farmácia, a mudança está dentro de nós e é difícil de conquistar.

Os questionados por vezes tentam contornar a resposta utilizando discurso demagógico como argumento, tentando iludir a minha clarividência e eu apenas travo a conversa e explico:

- Apenas quero um sim, ou um não, ou ainda um nim. Basta-me isso. Basta-me a revolução interior que sentiste em poucos segundos, e que eu consigo ler no teu olhar. Não interessa fazer a contabilidade das ausências e das presenças, das incertezas e das angústias. Quero a contabilidade feita na chapa como se este fosse o teu último dia, sem projecções dos amanhãs e as decepções do passado. És feliz hoje?

Esta pergunta andará vários dias a navegar na mente do questionado, provocando quiçá algumas horas de insónia e de mal-estar. No final do dia olhar-se-á nos seus próprios olhos ao espelho, descodificando todo o seu coração, desparadoxando a sua mente… um dia após o outro até praguejar contra mim:

- Raios partam a gaja que me veio tirar o sossego! Não tinha outra pergunta para me fazer?

Esquecem-se de que se deveriam perguntar muitas vezes ao longo vida. Sou feliz? Claro que se põe a questão filosófica sobre a felicidade, se existe ou não… mas, poderemos apostar em sermos menos infelizes.

Há uma tendência: Os que são mais infelizes, e que têm dificuldade em assumir as inseguranças, os desencontros, sentem muita resistência e falta de coragem para a mudança, mentem e dizem que são felizes. É mais fácil. Não se comprometem apesar do desconforto lhes apertar a garganta. Os mais inquietos e frontais e provavelmente os que contabilizaram mais momentos felizes, não receiam em dizer que têm muitos momentos infelizes.

Os verdadeiramente infelizes, não conseguem mudar, fecham-se no seu mundo bafiento, numa modorra doentia, a ver televisão e a beber uma cervejola ocasionalmente e a tomar o comprido para o colesterol. Mudar dói. Mudar envolve perdas e ganhos e já que é assim, decidem ficar na mesma, poupa raciocínio e uma série de avaliações/decisões, que os poderão retirar das suas zonas de conforto. É melhor continuar naquele diálogo “profundo e construtivo” com o cônjuge ou parceiro, que mais parece um copo de água insalubre:

- Chega-me um guardanapo, por favor. /…

- Queres bem-passado ou mal-passado? /…

- Passa-me o sal. /…

- Comi de mais. /…

- Amanhã vai chover?...

E depois passam para a diversão, um vê telenovela na TV da cozinha e o outro vê o futebol na TV da sala. Uma diversão que tolhe!

A mulher substitui o rolo do papel higiénico no WC, o homem arrota ao levantar-se da mesa, ambos atiram o olhar gasto para fora da marquise e recolhem-se numa inércia gritantemente acomodada.

Um dia perguntei ao psiquiatra:

- Como estamos de felicidade?

… e a resposta foi surpreendente:

- 90% dos casamentos são infelizes. Ser feliz dá muito trabalho.

- E os casais aceitam isso, não querem ser felizes com outras pessoas, noutros contextos?

- Dá menos trabalho continuar assim.

Caro leitor, já se questionou? De que lado está?

Publicado em NVR 20/07/2022

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