27 outubro, 2021

O SONO

 

O sono


          Dois terços da nossa vida é passada a dormir. Por vezes acho excessivo. A nossa esperança de vida ronda os 80 anos, porém, o tempo útil resume-se a 53 anos, porque nos anos restantes estamos a dormir. Dá vontade de não dormir mais. Teoricamente o sono não deveria existir. Estamos aqui para viver e não para dormir e sair da realidade.

          Se pensarmos bem, reparem, nós, seres terrestres estamos programados para dormir diariamente. Enfrentamos a luta pela sobrevivência, estamos activos muitas horas ao longo do dia, mas chega a noite e todos temos que obrigatoriamente recolher a um canto e desligar. É isto, parece que transportamos uma bateria que entra em falência diariamente sendo necessário recarregá-la, como faço com o telemóvel, todas as noites. O grande responsável por esta nossa faceta, parece ser o nosso cérebro, por lá passam diversos circuitos que ele faz questão de interromper, desativando o pensamento, a consciência, condicionando o movimento e mantendo a respiração compassada e regular. E nesse momento entra em função, o sono. Procuramos um espaço para nos podermos encostar ou deitar e repousar a cabeça. A maioria fecha os olhos.

          Inventou-se a almofada e os lençóis, tornando este retiro da actividade mais confortável e mais íntimo. Parecemos um papel dentro de um envelope, entre o lençol de baixo e o de cima. Antigamente dormia-se embrulhado em peles junto do fogo para afugentar os animais. Quando dormimos estamos desprotegidos. Ignoramos o que se passa à nossa volta tornando-nos frágeis e vulneráveis. Podem circular ladrões, mamutes, morcegos, aranhas, fantasmas, anjos, demónios e nós ali, em repouso, vulneráveis e desprotegidos... até os mosquitos percebem e aterram na nossa pele como se de um aeroporto noturno e sem vigilância se tratasse ZZZZZZZZZZZ. Tudo isto poderia ser uma alucinação humana, todavia, se teimarmos em não dormir, o que acontece? Na verdade, um terço da nossa vida vai ao ar, mas o que acontece se não dormirmos? As crianças ficam rabugentas e chegam a um ponto que abrem a comporta das lágrimas e desatam a chorar e a gritar sem qualquer lógica. E nós os adultos? A energia reduz-se, assim como a produtividade, o mau-humor e a irritabilidade aceleram, ficamos cada vez mais cansados, até ao colapso, até ficarmos tipo brinquedo escangalhado, com as peças todas, mas avariado. Ficamos sem concentração, com a memória a falhar, assim como os reflexos, aumentando a probabilidade de ocorrerem acidentes e adormecermos sem querer em qualquer lugar.  Os cientistas dizem que o período mais longo que uma pessoa já conseguiu ficar sem dormir foi de onze dias, portanto muito distante do objectivo apontado dos 27 anos.     

          A contradição que existe é a seguinte, se estamos inactivos de olhos fechados, paradinhos, sem consciência do que se passa à nossa volta, porque todos nós gostamos de dormir? É que não se passa nada, numa boa noite de sono, no meio da escuridão e do silêncio, apenas vai passando lentamente o vazio das horas, e os aranhas nocturnas até se assustam com o nosso ronco e mais nada. A dormir quase não existimos, somos possuídos pela insensibilidade dos sentidos compostos de vazios diários, que se vão unindo através das horas de acordados, unindo memórias e teias de pensamentos interrompidos e suspensos pelo sono. Normalmente conseguimos identificar-nos, ou seja, aquele que adormeceu consegue identificar-se com quem o acordou.

          Diminua o sono, e não é apenas o cérebro que sofre. Os sistemas reprodutivo, metabólico, cardiovascular, termo-regulador e imunológico também sofrem. Talvez seja a acção inactiva que mais benefícios nos traz. Mas se é assim tão benéfico, porque acordamos?

Publicado em NVR, 27/10/2021 


Sem comentários: