13 outubro, 2021

7 de Outubro

 7 de Outubro 


              Há umas décadas preparava a tecnologia para o início do ano escolar que se iniciava dia 7 de outubro. A lousa, o ponteiro, o caderno de linha estreita, com o Camões na capa e a tabuada na contracapa, uma pena para molhar no tinteiro da escola e uma esferográfica com mola só para escrita especial, faziam parte deste kit educacional que me permitia frequentar a escola. A tecnologia era fraca, mas a data era excelente... a 7 de outubro regressávamos à escola iniciando um novo ano lectivo.

              Tínhamos 4 meses de férias, que davam para brincar, correr, subir às árvores, ir à praia (iam poucos), descansar, ler e fazer tantas outras coisas fora de casa. Ajudar os pais, também. Aprendi a descascar batatas, a limpar o pó, a carregar água, a passar a ferro, a apanhar fruta, a coser botões, a fazer malha, a bordar, a lavar loiça e roupa, a envernizar janelas e a fazer algumas reparações domésticas, a apanhar fruta, a saltar à corda, a ouvir as histórias da minha família e das outras. Televisão, quase não existia. Tínhamos todas as nossas horas de lazer preenchidas. Gozávamos de uma liberdade desmedida com o tempo a passar devagar, chegando e sobrando para tudo, para divertir e também para trabalhar, ajudando os pais. Ninguém tinha relógio, ouvíamos as horas através do sino da igreja que indicava a hora de recolher a casa para almoçar e jantar. Alguns dos meus amigos almoçavam no campo à sombra de uma árvore, na hora da paragem da labuta campestre. Eram tempos duros, mas de férias grandes e abastadas.

              Não eram os 4 meses de férias que nos retiravam capacidade de aprendizagem e nos limitavam competências. Pelo contrário. Eram 4 meses de aprendizagem não académica intensa, que favoreciam a motricidade e a potencialidade para resolver problemas. Muitos viviam o verão descalços, em contacto com a natureza, aprendendo aquilo que a família ensinava – aprendizagem de afectos e de sentido de pertença aos lugares e às famílias. Alguns escapavam até ao rio para uma banhoca. Brincar na rua, era bom, correr atrás do arco, saudável e viajar no interior da dorna de uvas que ia para a vindima, tresloucado e radical.

              Agora as nossas crianças têm uma existência pobre, com experiências pobres, em frente de uma televisão pobre ou com um tablet nas mãos. Os papás querem despachá-las o mais cedo possível para a escola. Na segunda semana de setembro começam as aulas, e lá vão eles para a escola, onde permanecem quase todo o dia. Contentes por reencontrar os colegas da sua existência tão triste e tão amarrada à tecnologia. Eles até pensam serem felizes olhando para um écran!

              Pobres deles, nem uma maçã sabem descascar! Não imaginam, como é pobre a partilha de experiências, quando devem escrever ou falar sobre as suas férias... todos contam as mesmas coisas, nenhuma aventura para partilhar, para além do jogo on line. Não sabem descascar uma batata, não sabem recortar uma figura em papel, todos trazem tesouras de pontas redondas, para ninguém se aleijar, coitadinhos, alguns correm desajeitadamente...

               Têm medo de saltar à corda, têm medo de saltar ao eixo, têm medo de saltar ao saco. As suas sapatilhas são caras, de marcas famosas, porém, não sabem apertar os atacadores. O seu imaginário é muito limitado, na ausência do um banco de experiências e emoções. Nunca brincaram à cabra-cega. Não sabem lançar um peão e desconhecem o que seja um ioió. Nunca saltaram para dentro de uma poça de água. Nunca fizeram um baloiço de corda suspenso numa trave, todos eles acham que os baloiços nascem nos parques infantis.  São jovens que vivem na escola quase desde que nasceram, sem investimento afectivo e experiencial. Talvez sejam felizes assim, não sei. Entre o tablet, o android e a televisão, pouco resta.

              Lá vão eles após com 2 meses de férias recuperar aprendizagens e tentar digerir currículos maçadores e enfastiantes, que não lhes ensinam a descascar maçãs, a coser botões e a fazer o jantar. Tentam aprender aquilo que poucos aprendem em casa, ser simpáticos, ser responsáveis e a ter respeito pelo outro. Gritam, quando aparece um aranhão a querer atravessar a sala de aula e ficam intrigados com a “cama do gato” que eu tento ensinar-lhes quando iniciamos a geometria.

              Observo-os, com a distância de várias décadas e tento adivinhar o seu abecedário da felicidade, já com cerca de um mês de aulas, neste 7 de Outubro.

Publicado em NVR em 13/10/21 

Sem comentários: