05 junho, 2019

Um abraço da lusofonia


Um abraço da lusofonia        

     
                Já um pouco atrasada, mas não posso deixar de referir o Prémio Camões 2019 atribuído a Chico Buarque de Hollanda. A escolha gerou unanimidade deste lado do Atlântico, apesar de uns murmúrios que a escolha tinha o objectivo de atingir Bolsonaro.
                Se foi ou não, não faço ideia, o nosso poeta é admirado muito antes de Bolsonáro e este prémio faz todo o sentido. Digo “nosso” porque este senhor faz a síntese de várias gerações de lusófonos de diversas longitudes/latitudes. Sinto-o próximo apesar de nunca ter estado com ele. No crescimento de um grande grupo de pessoas onde me incluo, Chico Buarque sempre foi uma referência em muitos momentos, sobretudo na poesia, na música e nos afectos. Quando revejo a minha vida há sons tropicais de terras zucas, que ficaram plasmados em mim e para sempre,
                “Ver a banda passar”, assinala a minha infância…
                A minha rebeldia tem tudo a ver com:
                “Oiça um bom conselho que eu lhe dou de graça, inútil dormir que a dor não passa, espere sentado ou você se cansa, quem espera nunca alcança…”
                Nunca o topei ao virar da esquina, tenho pena, ficaria sem jeito e cheia de vontade para lhe pedir, faz uma música só para mim.
                Um dia Clarice Lispector disse, que Chico era “altamente gostável” e eu concordo. Doce, terno, tímido, honesto, lúcido, melancólico, com sentido de humor, pacífico, bonito fez a revolução das mentalidades de várias gerações com as palavras tão peculiares e tão acertadas quando associadas à música, relatando de forma inteligente e poética o seu amado Brasil tão multifacetado. É sobretudo um potencial e genuíno criativo, daqueles que sofre de “vazio”, angustia-se na procura da inspiração, recebe as ideias num flash que há muito procurava e no final sente-se perdido quando um projecto se conclui. A fama vem depois, como consequência, mas não influenciando em nada a sua postura.
                Por vezes ouvi junto ao meu ouvido, palavras que tentavam conter a minha nostalgia,  “morena de olhos de agua, tire os seus olhos do mar, vem ver que a vida ainda vale, um sorriso que eu tenho para lhe dar.”
                Invejo-o por ter criado tão a bem a sua construção, desenhando o operário sem esperança:
“…Subiu a construção como se fosse máquina, ergueu no patamar quatro paredes sólidas, tijolo com tijolo num desenho mágico, seus olhos embotados de cimento e lágrima…”
                Cada um terá um contexto pessoal ligado a uma música sua. O Chico é a prova de como é possível dizer as coisas proibidas e desconfortáveis, sem falar claramente nelas, mas com mensagem inteligente, discreta e humanista que atinge em cheio, o receptor.
                O que dizer de “tanto mar, tanto mar” a separar dois países irmãos, em que só um está “na primavera, pá”?
E contrariando a bigamia… "Quando teu coração suplicar, ou quando teu capricho exigir, largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir"
                Li o romance Budapeste, escrito na sua maturidade, focando-me na análise da duplicidade do amor e ganhei vontade para visitar esta cidade, para tentar perceber como se escreve enquadrando um local, sem o conhecer, como fez Chico. Li o meu irmão alemão e descobri alguns mistérios da sua família e relembrei alguns da minha.
                Meu caro amigo:
“a coisa por aí está preta,
saudações para Marieta”,
esperamos por si um dia,
um abraço da lusofonia.

AQ
Publicado em NVR

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