09 julho, 2025

O sisudo do Siza

 


O sisudo do Siza

Umas vezes digo que fui aluna do Siza durante 3 anos, outras vezes digo “carinhosamente” que levei com o Siza durante 3 anos em Construção II, III e V. Tivemos uma relação de agitação da minha parte e indiferença da parte dele. Andei à chuva, a fazer levantamentos de caixilharias no Passeio das Virtudes, para a cadeira de Construção II, com trama de milímetro a milímetro, suada, com régua T e esquadro. Foi necessário trabalhar em pares, incomodar pessoas para me permitirem o acesso ao interior das habitações, usar cadeiras e escadotes, medir tudo, esquissar, batalhar contra as inseguranças da primeira vez, a indecisão de milímetros, se são 6,40 cm ou 6,50 cm, confirmar tudo, corrigir erros, trabalhar pelo exterior em dias frios com chuva.

Eu e o meu colega e amigo Rui Nogueira, ambos vestíamos impermeáveis, com capuz, porque não sobravam mãos para o guarda-chuva, ocupadas com 2 fitas métricas, caderno de desenho, esferográfica e máquina fotográfica. As pingas da chuva amoleciam o papel. Tocámos à campainha de uma habitação qualquer, para tentarmos fazer o levantamento pelo interior, o intercomunicador abriu a porta de entrada, subimos ao 2º andar, e encontrámos um homem ensonado, em pijama, de cabelo desgrenhado… Era o conhecido Jorge Lima Barreto, [JLB (1947- 2011) - músico, escritor, conferencista, improvisador, musicólogo e professor na Faculdade de Letras do Porto e na Escola Superior de Belas Artes do Porto], que por vezes parava pelo Bar da Escola de Belas Artes, de rosto remelento e mal acordado já a puxar um cigarro para fumar.

- f---ds a tocar a esta hora!!!! (eram 10h30m)

Pedimos desculpa, explicámos ao que íamos,… alunos do Siza,… intervenção no Passeio das Virtudes... se fosse possível…

- Entrem, nem estou com paciência para vos aturar, façam o que quiserem, não molhem o chão e fechem bem a porta quando saírem! – retirou-se cambaleante a resmungar e voltou para cama.

Hoje, sinto que o JLB deve ter pensado: “mais uns idiotas a querer medir a cidade do Porto ao milímetro. Alunos do Siza, puf!!!“

Seguiu-se a fase do desenho rigoroso, plantas, alçados, cortes, pormenores à escala 1:2 das malditas janelas. Ingénua, pensava eu que o Siza iria ver detalhadamente o trabalho em curso. Pendurei as peças desenhadas na parede da sala de aula, no dia da avaliação, produto de muiiitas horas de trabalho, poucas horas de sono e onde a minha vista começou a cansar. O Siza entrou na minha sala a fumar, taciturno, sisudo e deitou um olhar de relance pelos trabalhos dos alunos, anotou qualquer coisa, passou à sala seguinte e saiu. Comecei a ferver em pouca água perante a indiferença dele. Tive assim alguns conflitos silenciosos, que depois se resolviam à hora do almoço na cantina, partilhando o café. Foi o prof mais teimoso que conheci, por vezes no meu desespero de não arranjar argumentos capazes, eu pensava, “Ele faz-se de burro! Este prof é impossível e intragável! Desesperante!”.

Nunca esqueço a sua voz monocórdica, nas sessões realizadas no anfiteatro, a explicar o “processo” e o “projêcto” com o seu sotaque de Matosinhos; com ele vivemos um pouco dos seus projectos -  Casas sociais SAAL, Bouça, Porto, Casas do Barredo, Porto, Casa azul de Sto Tirso, Bairro habitacional da Malagueira, Évora, Banco de Vila do Conde, edifício Bonjour Tristesse, e outros projectos para Berlim. A sua Bomba Amarela (Casa Beires) foi a maior lição de arquitectura que ele partilhou com todos os seus alunos. A sua experiência como arquitecto/professor e os seus projectos ficavam a “fermentar” na nossa cabeça, favorecendo e enriquecendo o nosso processo de mudança interior e criativo – ser aluno do Siza era isto, ter a oportunidade para acompanhar e seguir o seu caminho. Era a Escola do Porto! Tive a sorte de assistir a uma apresentação de uma obra dele, que já não lembro qual, e entender exactamente a sua forma de ler e interpretar a malha urbana de uma cidade e abriu-se uma janelinha na minha cabeça, que provocou uma verdadeira revolução interior, alterando todos os conceitos que habitavam o meu pensamento. De repente concluí o curso de arquitectura com a melhor nota, um dezasseis e adquiri uma visão diferente sobre os aglomerados urbanos, que me acompanha até hoje.

Visitei a Bomba Amarela diversas vezes, e tanto a piscina de Leça, como a Casa de Chá fizeram parte dos meus momentos de lazer ao longo de alguns anos.

Se soubesse o que sei hoje não andaria à chuva a medir caixilharias, mas era preciso saber o que sei hoje! Obrigada Siza! São 92 anos. Que contes muitos mais! (25|06|2025)

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