O sisudo do Siza
Umas vezes digo que fui aluna do Siza durante 3 anos, outras vezes digo
“carinhosamente” que levei com o Siza durante 3 anos em Construção II, III e V.
Tivemos uma relação de agitação da minha parte e indiferença da parte dele.
Andei à chuva, a fazer levantamentos de caixilharias no Passeio das Virtudes,
para a cadeira de Construção II, com trama de milímetro a milímetro, suada, com
régua T e esquadro. Foi necessário trabalhar em pares, incomodar pessoas para
me permitirem o acesso ao interior das habitações, usar cadeiras e escadotes,
medir tudo, esquissar, batalhar contra as inseguranças da primeira vez, a
indecisão de milímetros, se são 6,40 cm ou 6,50 cm, confirmar tudo, corrigir
erros, trabalhar pelo exterior em dias frios com chuva.
Eu e o meu colega e amigo Rui Nogueira, ambos vestíamos impermeáveis, com
capuz, porque não sobravam mãos para o guarda-chuva, ocupadas com 2 fitas
métricas, caderno de desenho, esferográfica e máquina fotográfica. As pingas da
chuva amoleciam o papel. Tocámos à campainha de uma habitação qualquer, para
tentarmos fazer o levantamento pelo interior, o intercomunicador abriu a porta
de entrada, subimos ao 2º andar, e encontrámos um homem ensonado, em pijama, de
cabelo desgrenhado… Era o conhecido Jorge Lima Barreto, [JLB (1947- 2011) -
músico, escritor, conferencista, improvisador, musicólogo e professor na
Faculdade de Letras do Porto e na Escola Superior de Belas Artes do Porto], que
por vezes parava pelo Bar da Escola de Belas Artes, de rosto remelento e mal
acordado já a puxar um cigarro para fumar.
- f---ds a tocar a esta hora!!!! (eram 10h30m)
Pedimos desculpa, explicámos ao que íamos,… alunos do Siza,…
intervenção no Passeio das Virtudes... se fosse possível…
- Entrem, nem estou com paciência para vos aturar, façam o que quiserem,
não molhem o chão e fechem bem a porta quando saírem! – retirou-se cambaleante
a resmungar e voltou para cama.
Hoje, sinto que o JLB deve ter pensado: “mais uns idiotas a querer
medir a cidade do Porto ao milímetro. Alunos do Siza, puf!!!“
Seguiu-se a fase do desenho rigoroso, plantas, alçados, cortes,
pormenores à escala 1:2 das malditas janelas. Ingénua, pensava eu que o Siza
iria ver detalhadamente o trabalho em curso. Pendurei as peças desenhadas na
parede da sala de aula, no dia da avaliação, produto de muiiitas horas de
trabalho, poucas horas de sono e onde a minha vista começou a cansar. O Siza
entrou na minha sala a fumar, taciturno, sisudo e deitou um olhar de relance
pelos trabalhos dos alunos, anotou qualquer coisa, passou à sala seguinte e saiu.
Comecei a ferver em pouca água perante a indiferença dele. Tive assim alguns
conflitos silenciosos, que depois se resolviam à hora do almoço na cantina,
partilhando o café. Foi o prof mais teimoso que conheci, por vezes no meu
desespero de não arranjar argumentos capazes, eu pensava, “Ele faz-se de burro!
Este prof é impossível e intragável! Desesperante!”.
Nunca esqueço a sua voz monocórdica, nas sessões realizadas no
anfiteatro, a explicar o “processo” e o “projêcto” com o seu sotaque de
Matosinhos; com ele vivemos um pouco dos seus projectos - Casas sociais SAAL, Bouça, Porto, Casas do
Barredo, Porto, Casa azul de Sto Tirso, Bairro habitacional da Malagueira,
Évora, Banco de Vila do Conde, edifício Bonjour Tristesse, e outros projectos
para Berlim. A sua Bomba Amarela (Casa Beires) foi a maior lição de
arquitectura que ele partilhou com todos os seus alunos. A sua experiência como
arquitecto/professor e os seus projectos ficavam a “fermentar” na nossa cabeça,
favorecendo e enriquecendo o nosso processo de mudança interior e criativo –
ser aluno do Siza era isto, ter a oportunidade para acompanhar e seguir o seu
caminho. Era a Escola do Porto! Tive a sorte de assistir a uma apresentação de
uma obra dele, que já não lembro qual, e entender exactamente a sua forma de
ler e interpretar a malha urbana de uma cidade e abriu-se uma janelinha na
minha cabeça, que provocou uma verdadeira revolução interior, alterando todos
os conceitos que habitavam o meu pensamento. De repente concluí o curso de
arquitectura com a melhor nota, um dezasseis e adquiri uma visão diferente
sobre os aglomerados urbanos, que me acompanha até hoje.
Visitei a Bomba Amarela diversas vezes, e tanto a piscina de Leça, como
a Casa de Chá fizeram parte dos meus momentos de lazer ao longo de alguns anos.
Se soubesse o que sei hoje não andaria à chuva a medir caixilharias,
mas era preciso saber o que sei hoje! Obrigada Siza! São 92 anos. Que contes
muitos mais! (25|06|2025)
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