Era noite de Natal
A família era grande, no
Natal não havia iluminações de rua, apenas havia uma luz a iluminar o
campanário da igreja da aldeia, e a grande fogueira, tradição milenar, que remete
a cultos pagãos, ligados aos solstícios, nas comunidades rurais.
A minha família, no
Natal, cada um fazia as refeições nas suas casas. As casas eram pequenas e
penso que nem haveria mesa para acolher mais de dezanove pessoas, com pratos,
talheres, copos, mais a luxúria gastronómica natalícia.
Na casa dos meus pais,
a árvore de natal já estava feita na semana anterior e o presépio organizado em
cima do musgo verdadeiro, num canto da sala. A minha mãe, com a ajuda das
filhas, organizava a consoada e o almoço de Natal. Nem supermercados havia e
pouco se comprava, tudo se fazia no grande fogão a lenha, que despachava vários
cozinhados aos mesmo tempo e ainda um forno para fazer o bolo-rei.
Iniciava-se já no dia
23 a preparação da abóbora e da chila, para as respectivas fritas. No dia 24, éramos
quatro à volta do fogão, ao som do sino da igreja que começava a tocar depois
do meio-dia. A nossa casa perfumava-se de canela, purificando o ambiente e
atraindo a boa sorte.
Jantávamos, o que era
estritamente tradicional, arroz de polvo, roupa velha (em terra de pobres, o
bacalhau tinha que render para várias refeições), polvo frito, bolos de
bacalhau, rabanadas, fritas de abóbora, sonhos, aletria e o melhor bolo-rei do
mundo, que só a minha mãe sabia fazer, com a massa ligeiramente adocicada com
rum e bem recheada de pinhões, seguindo a receita do famoso Pantagruel.
Depois de tudo arrumado
e limpo, saíamos todos de casa, íamos levar uma parte da ceia a uma família
pobre, passávamos rapidamente em casa do tio Alberto e da tia Matilde e
seguíamos para casa da avó Felisbela, onde se reuniam todos os primos e tios,
irmãos do meu pai. Os mais novos iam para uma sala e os mais velhos ficavam
noutra. Esqueci-me de referir que o aquecimento era feito pelo velho fogão de
lenha e braseiras, que contrastavam com a noite gelada que decorria lá fora. Já
ninguém queria comer, queríamos conversar, contar estórias e recordar os Natais
anteriores.
Jogávamos às damas e ao
rapa (Rapa, Tira, Deixa, Põe – jogo de origem judaica), apostando confeitos de
açúcar e pinhões, que íamos tirando das pinhas do pinheiro-manso, depois com as
cartas, jogávamos ao mafarrico, os mais crescidos faziam batota e o jogo sempre
terminava, numa grande algazarra. Por vezes os mais velhos vinham para a nossa
sala, porque era mais animada. Com a minha avó Felisbela poderia sempre surgir
um momento de cantoria, uma música de Natal ou uma música antiga, valia tudo e
em simultâneo entretinha um dos netos brincando à cama do gato.
Circulavam os figos
secos, guardados num saco enfarinhado, as passas ou os cachos de uvas ainda
resistentes, as nozes, avelãs e amêndoas, partidas na hora. Ocasionalmente íamos
dar “uma carreira” no sino, porque a igreja situava-se ao lado da casa da nossa
avó, e nesse dia o campanário abria-se para esse fim, tocar no sino. Deim,
deim, deim, dom, deim, deim, dom…
Os mais velhos, dos
mais novos, tinham direito a um cálice de vinho do Porto, Lacrima Christi, que
o nosso tio Manuel, o mais divertido, reservava para aquela noite especial, já
arrumado junto ao escano, e os cálices em filinha sobre a masseira. Os mais
novos apenas bebiam uma pinguinha no fundo do cálice ou uma jeropiga “batizada”.
Abria-se a garrafa com grande aparato, os brindes eram divertidos, e ruidosos,
porque todos nos excedíamos no discurso, na alegria e na gargalhada.
Nessa noite não havia
presentes e quem os trazia, era o Menino Jesus durante a noite e só se viam no
dia seguinte, coisas simples, onde se valorizava mais a surpresa, do que o
conteúdo. Quando a fogueira da aldeia já estava de bom tamanho, todos vestíamos
os casacões e as samarras para ir até junto dela, e sentir aquele calor
vibrante e o barulho do fogo a consumir a grande pira de lenha. Ali se reuniam
novamente outros familiares e amigos.
Eu olhava o céu desejando
muito ver uma estrela-cadente, como sinal de sorte e boa aventurança, e para
pedir um desejo. Era noite de Natal.
Publicado em NVR, 23|12|2024
Sem comentários:
Enviar um comentário