23 dezembro, 2024

ERA NOITE DE NATAL

 


Era noite de Natal 

A família era grande, no Natal não havia iluminações de rua, apenas havia uma luz a iluminar o campanário da igreja da aldeia, e a grande fogueira, tradição milenar, que remete a cultos pagãos, ligados aos solstícios, nas comunidades rurais.

A minha família, no Natal, cada um fazia as refeições nas suas casas. As casas eram pequenas e penso que nem haveria mesa para acolher mais de dezanove pessoas, com pratos, talheres, copos, mais a luxúria gastronómica natalícia.

Na casa dos meus pais, a árvore de natal já estava feita na semana anterior e o presépio organizado em cima do musgo verdadeiro, num canto da sala. A minha mãe, com a ajuda das filhas, organizava a consoada e o almoço de Natal. Nem supermercados havia e pouco se comprava, tudo se fazia no grande fogão a lenha, que despachava vários cozinhados aos mesmo tempo e ainda um forno para fazer o bolo-rei.

Iniciava-se já no dia 23 a preparação da abóbora e da chila, para as respectivas fritas. No dia 24, éramos quatro à volta do fogão, ao som do sino da igreja que começava a tocar depois do meio-dia. A nossa casa perfumava-se de canela, purificando o ambiente e atraindo a boa sorte.

Jantávamos, o que era estritamente tradicional, arroz de polvo, roupa velha (em terra de pobres, o bacalhau tinha que render para várias refeições), polvo frito, bolos de bacalhau, rabanadas, fritas de abóbora, sonhos, aletria e o melhor bolo-rei do mundo, que só a minha mãe sabia fazer, com a massa ligeiramente adocicada com rum e bem recheada de pinhões, seguindo a receita do famoso Pantagruel.

Depois de tudo arrumado e limpo, saíamos todos de casa, íamos levar uma parte da ceia a uma família pobre, passávamos rapidamente em casa do tio Alberto e da tia Matilde e seguíamos para casa da avó Felisbela, onde se reuniam todos os primos e tios, irmãos do meu pai. Os mais novos iam para uma sala e os mais velhos ficavam noutra. Esqueci-me de referir que o aquecimento era feito pelo velho fogão de lenha e braseiras, que contrastavam com a noite gelada que decorria lá fora. Já ninguém queria comer, queríamos conversar, contar estórias e recordar os Natais anteriores.

Jogávamos às damas e ao rapa (Rapa, Tira, Deixa, Põe – jogo de origem judaica), apostando confeitos de açúcar e pinhões, que íamos tirando das pinhas do pinheiro-manso, depois com as cartas, jogávamos ao mafarrico, os mais crescidos faziam batota e o jogo sempre terminava, numa grande algazarra. Por vezes os mais velhos vinham para a nossa sala, porque era mais animada. Com a minha avó Felisbela poderia sempre surgir um momento de cantoria, uma música de Natal ou uma música antiga, valia tudo e em simultâneo entretinha um dos netos brincando à cama do gato.

Circulavam os figos secos, guardados num saco enfarinhado, as passas ou os cachos de uvas ainda resistentes, as nozes, avelãs e amêndoas, partidas na hora. Ocasionalmente íamos dar “uma carreira” no sino, porque a igreja situava-se ao lado da casa da nossa avó, e nesse dia o campanário abria-se para esse fim, tocar no sino. Deim, deim, deim, dom, deim, deim, dom…

Os mais velhos, dos mais novos, tinham direito a um cálice de vinho do Porto, Lacrima Christi, que o nosso tio Manuel, o mais divertido, reservava para aquela noite especial, já arrumado junto ao escano, e os cálices em filinha sobre a masseira. Os mais novos apenas bebiam uma pinguinha no fundo do cálice ou uma jeropiga “batizada”. Abria-se a garrafa com grande aparato, os brindes eram divertidos, e ruidosos, porque todos nos excedíamos no discurso, na alegria e na gargalhada.

Nessa noite não havia presentes e quem os trazia, era o Menino Jesus durante a noite e só se viam no dia seguinte, coisas simples, onde se valorizava mais a surpresa, do que o conteúdo. Quando a fogueira da aldeia já estava de bom tamanho, todos vestíamos os casacões e as samarras para ir até junto dela, e sentir aquele calor vibrante e o barulho do fogo a consumir a grande pira de lenha. Ali se reuniam novamente outros familiares e amigos.

Eu olhava o céu desejando muito ver uma estrela-cadente, como sinal de sorte e boa aventurança, e para pedir um desejo. Era noite de Natal.

Publicado em NVR, 23|12|2024

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