16 abril, 2022

FELIZ PÁSCOA

 


A Páscoa quando eu era criança tinha outro sabor. Quando somos crianças e estamos com os nossos pais e irmãos, vivendo na aldeia, tudo é diferente para melhor. Apesar de embirrar com os jejuns de sexta-feira, ficar todo o sábado a salivar e a olhar para o pão-de-ló, que só se poderia comer no domingo... apesar de embirrar com as pérolas de açúcar que se colocavam sobre o folar doce, para o enfeitar... apesar de naquela idade não apreciar a carne de borregos, porque os via nascer... mesmo assim, aguardava ansiosa pelas amêndoas, belíssimas decoradas e “importadas” da Arcádia na cidade do Porto.

Cheirava a bola de carne, leite-creme e aletria, e eu não tinha que me preocupar com nada, porque a minha mãe tratava de tudo. Recebíamos os padrinhos, eu as minhas irmãs e o nosso pai, tínhamos os mesmos padrinhos, um casal de tios do meu pai, e que eu, na Páscoa, me interrogava sempre, porque me tinham escolhido uns padrinhos tão velhos; afinal o verdadeiro motivo era porque não tinham filhos. Queridos, honrados, mas velhos. Naquela idade pensava que a velhice começava quando as mulheres não dançavam mais na festa ou quando os homens ficavam calvos. Afinal alguns deles eram mais novos do que eu sou hoje. Mas voltando à Páscoa, a tarde passava-se aguardando o Compasso. A nossa rua era varrida no dia anterior e todos os vizinhos após o almoço abriam as portas principais das suas casas para receber o Compasso, e conversando, aguardavam o sr. padre, o sacristão e os ajudantes, o da caldeirinha e o dos envelopes. Inicialmente pensei que os meus pais enviavam correio para o Reino dos Céus, depois percebi que o envelope continha 100 mil reis.

Até que se ouvia uma sineta, lá para o lado das Fontes... depois ficávamos em suspense desconhecendo se o sr padre virava logo â esquerda para a rua da Pereira, ou se seguiria em frente, levando o Senhor, primeiro ao Franco. Nunca ninguém sabia. O sr Padre Sampaio era imprevisível e irritável, e ninguém ousava perguntar com antecedência. Eu ia beliscando o meu folar, primeiro as malditas pérolas que sabiam mais a farinha do que a açúcar, depois uma amêndoa, mais escondida e finalmente passava o indicador na açucarada cobertura alva, e lambia.

A Páscoa era, portanto, um domingo de espera, apenas com a garantia que terminava à hora do lanche, quando finalmente se comia umas talhadas de bom presunto ou salpicão e os folares mordiscados por mim.

Hoje, para além de ter saudades dos pais e padrinhos que já partiram, 1/3 das tarefas sobram para mim, as amêndoas são de chocolate, as pérolas já não existem porque se descobriu que a tinta prateada era tóxica e o pão-de-ló, considero-o muito seco e foi substituído democráticamente por bolo de bolacha e outros bolos muito mais saborosos e calóricos, mas sem tradição. Já não nos interessa o horário do padre, porque já não há padres para ir benzer as casas da cidade, e estes são substituídos pelo senhor. da retrosaria, o chefe dos escuteiros e o senhor que vem cá a casa fazer reparações eléctricas, o que já não faz sentido nenhum

Sobre o almoço principesco... agora, gosto de borrego porque decidi assumir que a carne nasce na prateleira do hipermercado, pronto, para não virar vegetariana e ficar com o cabelo encaracolado como a minha psicóloga. Os mais novos continuam on line e os mais velhos discutem política, terminando sempre com a célebre frase “É o país que temos!” descartando qualquer esperança e entusiasmo pelo futuro... há sempre alguém que queira registar o momento com umas fotos realizadas no telemóvel, que ficam sempre umas fotos um pouco idiotas, porque a terceira geração encontra-se na faixa etária do armário e coloca sempre as mãos à frente, e o autor da fotografia fica em primeiro plano e parece picado pelas vespas.

A seguir ao almoço se estiver sol, vamos dar uma volta pela avenida e em vez de rezarmos, alguns já nem sabem, apelamos:  Ai meu Deus, comi tanto.... Ai meu Deus e aquele bolo lençol?!... Ai meu Deus amanhã começo a fazer dieta... Ai meu Deus vou enfartar... Ai meu Deus sobrou tanta comida, teremos que jantar para acabar com os restos.   

in "Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado" Anabela Quelhas  

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