04 agosto, 2021

O GLÚTEN DA LIBERDADE

 


O GLÚTEN DA LIBERDADE

            A opinião pública divide-se quanto ao luto nacional pelo desaparecimento de Otelo Saraiva de Carvalho. Nunca alguém foi tão visivelmente questionado, como este caso que, reacendeu ódiozinhos amarfanhados, recordou Abril e ainda as conturbadas acções terroristas que têm abalado a nossa jovem democracia.

            Esta agitação levou-me a investigar sobre o significado do luto nacional e o seu critério de selecção. Verifiquei que o luto nacional pode ser decretado pelo falecimento de personalidade, ou ocorrência de evento, de excepcional relevância... e segue-se uma lista enorme dos lutos já decretados. Confirmei alguns casos, surpreendi-me com outros que assinalam a nossa História. Ora vejam:

            - D. Luísa de Gusmão mereceu 2 anos de luto nacional;

            - A rainha D. Maria I. um ano de luto nacional;

            - A Rainha D. Maria II teve menos consideração, 6 meses;

            - D. Carlos apenas 4 meses ultrapassado e muito por Eduardo VII do Reino Unido, que teve direito por parte de nós, portugueses, a 6 meses de luto carregado e 6 meses de luto não carregado, sabe-se lá porquê!

            - Hitler, 3 dias, valeu-lhe as câmaras de gás e outras atrocidades;

            - Salazar, 4 dias, apenas um dia a mais do que o anterior;

            - Samora Machel e o Imperador Hirohito do Japão – 3 dias cada, desconheço se Agostinho Neto e Amílcar Cabral tiveram o mesmo tratamento;

            - General Spínola, 2 dias, não bastava 1? Mas como dirigente do MDLP teve direito a 2 dias.

            Que raio de coerência é esta?!

            - Eusébio, Amália Rodrigues, Nelson Mandela e Papa João Paulo II, levaram pela mesma medida, 3 dias.

            - António Arnaut, grande responsável pela criação do Sistema Nacional de Saúde teve 1 dia, superado pelo Manuel de Oliveira com 2 dias.

            - Carlos do Carmo, fadista, foi considerado equivalente a Álvaro Cunhal, figura histórica e carismática da resistência ao fascismo.

            As pessoas questionam-se, opinam e todos parecem ter razão. Todos lembram Otelo como o herói e o estratega do 25 de Abril, que libertou este país da guerra colonial e do antigo regime ditatorial. E todos lembram também a sua ligação às FP25, apesar de ter sido julgado e amnistiado. Dizem que uma ação não pode invalidar a outra. Mas parece que sim, que pode. A sua ação no 25 de abril não invalida o seu envolvimento nas FP, porém, a sua ligação às FP25 invalida que se considere e se atribua o ritual do luto nacional, à figura que devolveu a liberdade a este país. É uma matemática estranha.

            Pouco me interessa o luto, o que constato é a azia que tudo isto provoca a certas e muitas pessoas. Nos mais jovens, existe uma ausência de significado e simbolismo sobre a revolução. Pensam que a revolução se fez de telemóvel na mão ou no sofá, como se faz nos jogos digitais. Nos mais velhos parece não haver o entendimento, que numa revolução se pode viver ou morrer, sair-se victorioso ou derrotado e portanto, quem a faz, não são os anjinhos do céu, são homens de armas na mão capazes de as usar, matando ou morrendo. Não se pode comparar um revolucionário com a irmã Lúcia. Não se pode minimizar uma revolução, nem compará-la com uma peregrinação a Fátima. São contextos, épocas, objectivos, estratégias e agentes distintos.

            Se reflectirmos bem sobre a maioria dos nossos heróis, verificamos como são sanguinários, possuindo uma contabilidade gigantesca de mortos e feridos. O nosso rei Fundador, quantos matou e quanto roubou?

            Samora Machel teria sido presidente sem Otelo?

            Sem Otelo, estaríamos nós aqui hoje, a falar e a escrever livremente?

            O reconhecimento e o percurso da História são inalteráveis, a memória não se apaga. Não queiram converter uma revolução militar em algo “light sem açúcar, sem glúten e sem aumentar o colesterol” desta vida, que tenta viver no fio da navalha entre o Bem e o Mal.

            Penso haver um esquecimento propositado sobre os capitães de Abril. Salgueiro Maia tinha o currículo limpo, Melo Antunes também e não tiveram luto nacional. Desvalorizar a sua acção, é desvalorizar a revolução, desprovendo-a de actos simbólicos para relativizar o que foi antes.

            Faltam 3 anos para as comemorações do 25 de Abril. Muita “tinta” irá correr através dos canais de comunicação, cavar-se-á um fosso cada vez mais significativo, entre os que festejam e valorizam e os que sentem verdadeiras comichões devido ao glúten da liberdade.  E afinal o que interessa o luto nacional? NADA e se o critério for duvidoso, ainda interessa menos.

            Retiro desta amálgama política, logicamente, todos os familiares das vítimas, sejam elas quais forem, e em que época, porque a sua dor merece todo o respeito do mundo.

Publicado em NVR 4/08/2021

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bom
Lu Martins