21 agosto, 2019

Traição e derrota


Traição e derrota

            Estou em Riga vivendo o ambiente romântico que a Arte Nova sempre me proporciona, apreciando edifícios projectados especialmente pelo arquitecto russo Eisenstein, conferindo a esta cidade o registo adequado para fotografar e recordar mais tarde.
            Escolhi o livro de lombada mais fina para me acompanhar e ler antes de adormecer, alimentando vicio antigo. É com surpresa que leio uma história com o enquadramento das encostas do Douro, onde se faz uma abordagem da traição e da derrota, num romance sobre um casal no final de uma relação. É apenas uma história igual a tantas outras, sem conteúdo científico, porém, parece-me bem verdadeira e acutilante.
            A maioria dos casais, quando se separam, por decisão unilateral, a parte que nada decidiu, acaba por partir à descoberta do(a) rival, o(a) causador(a) do insucesso da parceria conjugal. Nada mais lhe passa pela cabeça a não ser, alguém que lhe roubou o(a) parceiro(a). Apenas foca o pensamento nisso não admitindo que pode não haver traição, nem rival. Movem montanhas, espreitam a vida do(a) outro(a), para ver com quem se encontra, para aonde vai, com quem janta, a que horas regressa a casa, como está vestido(a), quanto tempo permanece em casa, se possível passam a pente fino o computador e o telemóvel, na desesperada procura e confirmação da suposta traição.
            Esquecem a ética, a dignidade e chafurdam em áreas que não lhes compete, invadindo o espaço do outro, devassando a privacidade a que cada um tem direito. Se tiverem dinheiro até contractam um detective, para que a informação lhes chegue bem documentada, anestesiando a irritação do seu ego, dando-lhe carradas de razão em discussões perfeitamente idiotas e irracionais, desenhando memórias inexistentes e que lhe alimentarão a depressão futura. 
            Moem e remoem essa ideia martirizando-se com ciúme, dor, sede de vingança e por vezes reagem violentamente, agredindo o(a) parceiro(a) verbalmente e ou fisicamente, não admitindo a rejeição. Ameaçam matar-se, como reduto final, apelando à misericórdia, como se a felicidade estivesse assegurada com a piedade pelo outro e ignorando todas as advertências e mal-estar demonstrados ao longo do tempo. Constroem “filmes” na sua insegurança bem escondida, sofrem, choram, atribuem significados especiais e duvidosos a situações vulgares, mas raramente pensam que pode não haver traição. Isso é inconcebível porque equivale ao seu fracasso, à sua derrota e à sua incompetência. É muito mais fácil atirar a culpa para os outros.
            É difícil e doloroso assumir culpas porque isso é pôr em causa a sua acção que ao longo dos anos se entendeu ser muito acertada, nunca questionando se seria acertada para o outro(a). A competição ao longo do tempo não foi com um terceiro elemento, mas sim consigo próprio. É difícil reavaliar os seus próprios conceitos e separar os erros que se repetiram constantemente e massacraram o outro, para além do tédio permanente que se foi instalando na re(a)lação. Todos os dias o objectivo deveria ser melhorar, superar-se e saber surpreender pela positiva o(a) outro(a), cuidando da felicidade dos dois — todos os dias, como se cada dia fosse o último dia das suas vidas. Mas não foi assim! Reconhecer isso é mais doloroso do que ser traído. O(a) “outro(a)” é o próprio e não saber lidar com isso é o desconserto de tudo, que nenhuma garrafa de uísque consegue afogar e que atormentará cada minuto de reflexão futura. Tudo isto requer uma aprendizagem que nem todos estão predispostos para investir, porque exige esforço, inteligência, altruísmo, cedência e preocupação na desconstrução da realidade.
            Apesar de doloroso, é mais fácil culpar os outros do que mergulhar na escuridão que vive dentro de cada um e acender a luz.
            Estou em Riga, apreciando o naturalismo esculpido na arquitectura urbana. Curiosamente, sempre acontece em viagem, cruzar-me com noivos que se fazem fotografar em ruas interessantes, com os seus egos elevados e de cara bonita. Oiço alguém dizer:
            — Logo estarás a lavar a loiça e ele de pantufas a ver futebol. 
            Nunca é demais escrever sobre este tema.
Publicado em NVR

3 comentários:

Ana Cadé disse...

Gostei muito do texto. Há uma falta de cuidado nos casais para desenvolver a sua relação de forma saudável, divertida e estruturada.
Beijinho

Anónimo disse...

Tão verdade.

Anabela Quelhas disse...

Ana Cadé, sabemos que há. Volta sempre. Beijinho