28 março, 2018

O nosso silêncio e o hospital


O nosso silêncio e o hospital


            O nosso hospital foi inaugurado há 26 anos. Nessa época permaneci por lá internada por uns dias e tudo me pareceu relativamente bem. Voltei outras vezes, felizmente a maioria das vezes, como visita, construindo sempre uma opinião positiva em relação aos cuidados prestados. Nestes últimos dias aconteceu de novo.
            Defendo a saúde pública, o Sistema Nacional de Saúde, os hospitais públicos, médicos e enfermeiros que aí trabalham, e até acho que deveriam ganhar mais, para que a exclusividade fosse uma realidade maior e mais consistente. Em todas as profissões há bons e maus profissionais, mas os que tratam doentes, admiro-lhes a paciência e a resiliência. Não é fácil trabalhar nas condições em que trabalham nos hospitais públicos.
            Não sei se têm os equipamentos necessários ou os mais modernos, não sei quantas horas trabalham, desconheço por completo as suas carreiras… esta minha reflexão remete-se exclusivamente à posição de utente. Trabalhar num edifício, com 26 anos, em que os pequenos detalhes arquitectónicos denunciam falta de manutenção e um envelhecimento continuado das instalações, merece já por si uma medalha de mérito para quem lá trabalha.
            Os vidros das janelas, já não são transparentes, são apenas translúcidos devido ao acumular de limpezas inexistentes, funcionando quase como quebra sol nos dias de verão. Os parapeitos exteriores têm várias camadas de pó e detritos que parecem vestígios do Jurássico. O revestimento do chão, em linóleo, tem 26 anos, todos os dias é limpo de esfregona e lixívia que vai acumulando milhares de micróbios, nos remates do rodapé, nas emendas do material, que aí residem felizes e contentes, admitindo sempre novos residentes – cabe sempre mais umas dezenas por dia! Há um percurso traçado através do linóleo menos brilhante, por onde se realiza a maioria dos passos dos utentes e profissionais, semelhantes aos jardins pisados em carreirinhos para chegar mais rapidamente ao lado oposto, sem os contornar. Se apurarmos o olhar, o linóleo é feito de uma camada superficial de diversas texturas vincadas que expressam os 26 anos de desgaste diário. Os cortinados que funcionam como separadores entre as camas das enfermarias, tem mais argolas soltas do que as que funcionam. Resultam como um plano de contorno irregular, assemelhando-se a formas fantasmagóricas que se devem adensar nos delírios febris de cada doente. Nunca vejo ninguém a limpar paredes, a desinfectar camas, a lavar azulejos das instalações sanitárias, muito menos interruptores e puxadores de portas… aquilo que nas nossas casas fazemos com regularidade, quando nós somos os únicos que lá vivem. Não me pronuncio sobre as condutas de ventilação, mas fico a pensar numa rede invisível, que deve estar inclassificável. Tudo isto confere ao edifício um odor que mistura sofrimento humano com limpezas imperfeitas, acentuadas pela degradação natural dos materiais. Os maiores inimigos das bactérias são efectivamente as máscaras, as luvas e o doseador de desinfectante de mãos, que estão no lugar certo. Os técnicos de saúde são uns verdadeiros heróis e anatomicamente especiais, pois já nascem com anti-corpos para enfrentar toda esta amálgama de potenciais infecções.
            Anteriormente, em cada piso, havia um compartimento no final do corredor, com 2 camas, para que médicos e enfermeiros pudessem eventualmente repousar durante a noite. O último piso era destinado a doentes que necessitassem de apoio familiar. Tudo isto desapareceu para aumentar as enfermarias. Não vi camas nos corredores, aqui não, nas urgências tantas vezes.
            Os doentes queixam-se dos enfermeiros que os atendem tardiamente, quando tocam à campainha. Não os vejo parados e quando os vejo, estão a escrever. Também devem ter que fazer relatórios por tudo e por nada. 
            Vi doentes com o tabuleiro da refeição à espera durante uma hora, que alguém chegasse para lhes dar à boca, vi enfermeiros a tentar salvar vidas, como acto solitário, vi-lhes a paciência infinita, vi voluntários a tentar ajudar… vi as refeições, o jantar desmotiva qualquer doente! É provável que nos quarteis e nos estabelecimentos prisionais se coma melhor. Há panados servidos a negro, depois de passados em óleo queimado e requeimado. Quem controla a qualidade das refeições executadas por empresas que apresentam o orçamento mais barato?
            [O sr. presidente Marcelo, agora que constatou que há pobres em Portugal, poderia de repente aparecer de surpresa numa enfermaria do Hospital de Vila Real, e comer a refeição de um dos doentes, num sábado ao jantar…]
             Percorro o longo corredor da medicina interna, vou olhando para o interior das enfermarias e vejo pernas esqueléticas de velhos no final da linha, expostas aos olhares, solitários no zelo pela sua intimidade/dignidade.
            Nem refiro os problemas das consultas… esperei 3 anos por uma consulta de pneumonologia/apneia do sono, mas percebi que havia quem tivesse esperado mais e parei de reclamar.
            Sou altamente alérgica a ácaros, ou coloco uma máscara quando entro nas enfermarias ou sou atingida por ataques de tosse violenta. Tenho um filho, que com 22 anos, esteve entre a vida e a morte, e foi tratado neste hospital durante 15 dias. Teve uma equipa fantástica a tratar dele, Dr. Rui Couto, Dr.a Filipa e Dr. Diogo Portugal, a quem estarei eternamente grata. Num fim-de-semana o meu filho pediu-me que lhe levasse uma máscara protectora, com vários filtros, daquelas que uso para pintar com sprays, pois era insuportável o cheiro de urina, que exalava do doente da cama ao lado. Descobriu um quarto banho no 1º piso, que raramente era utilizado, e descia 4 andares todos os dias, para ali fazer a sua higiene.
            Por vezes é impossível eliminar ou atenuar o sofrimento humano, mas há universos de situações que precisam de ser denunciadas e solucionadas, porque têm solução. A morte não tem solução, mas amaciar o seu caminho, tem muitas soluções. Cada doente, devido à sua vulnerabilidade, raramente reclama ou manifesta a sua indignação. Quer apenas ir para casa rapidamente, livrar-se daquilo e não olhar para trás. Ir à secretaria, denunciar, ou reclamar sobre isto e aquilo, é um processo que não cabe na mente daqueles que querem chegar a sua casa rapidamente e que receiam ter de voltar para lá.
                                               (…) e o nosso silêncio significa legitimar situações.
            Há aqui a urgência de se juntarem vontades políticas para se resolver tudo isto, com máquina de calcular, mas estabelecendo como prioridade a saúde pública. O que interessam festivais da canção, grandes congressos de partidos políticos, fundações disto e daquilo, institutos público-privados, grandes lucros na EDP, PETROGAL e PINGO DOCE,  guerras do futebol, perdões de divida dos nossos ladrões figuras públicas, apoios financeiros a escolas e a hospitais privados?
             A fuga para os hospitais privados, não são a solução. A atitute, cada um safa-se como pode, não é dignificante, nem civilizacional.   
            Para finalizar, a nossa actual ministra do mar, Ana Paula Vitorino, há dias numa entrevista na televisão, abordou corajosamente a problemática da experiencia que teve, como paciente oncológica, numa mensagem racional, positiva e optimista. Esteve hospitalizada na Fundação Champalimaut, mas afirmou que a única diferença em relação ao serviço público são questões de “aspecto”.
                                                 (…) e o nosso silêncio significa legitimar situações.
“O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.” Martin Luther -King

Publicado emNVR,  28/03/2018

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