15 julho, 2013

A mecânica e a psiquiatria

Julguei que a mecânica seria uma ciência exacta, como a matemática, como os cálculos que eu tão bem sabia fazer na disciplina de física (a estática, a dinâmica e a quântica) (acelerações e movimentos, forças, peso, vectores, and so on) dentro daquelas salas de calor constante entremeado com frescas correntes de ar a cheirar a acácia rubra.
Tenho verificado que talvez não seja bem assim.
Observo os mecânicos, abrem o capô e coçam a cabeça, embaralhando os cabelos mesmo que eles sejam pente 3, grisalhos ou negros ou até que nem existam.
O meu psiquiatra também faz o mesmo. Homem sexagenário de perfil freudiano sentado no seu cadeirão, de olhar atento e curioso, pronto a descobrir o ninho de cucos que poderá existir em mim.
Os raciocínios que obrigam a essa esfregação não devem ser matemáticos, suponho. Tenho reflectido sobre isso, tenho-me questionada para melhor conhecer o mundo.  
Quando falo das minhas fobias, dos meus sonhos, dos meus pesadelos diurnos e nocturnos, das minhas inseguranças, o psi afaga a barba e invariavelmente passa disfarçadamente os dedos levando a sua caneta credenciada entre eles e esfrega a cabeça. Não há matemática que não se vergue à sua caneta parker rialto (acredito eu).
O que quererá isso dizer?
Será a lógica ilógica das minhas dúvidas esofágicas que assanham a circulação da cabeça do meu psi?
O mecânico faz igual, evidentemente com as mãos oleadas em massa consistente, menos elegante, vestindo um fato de macaco azul muito manchado e com odor a escape, óleo queimado e transpiração quê bê, mas imbuído do mesmo gestual e com o mesmo brilho preocupado reflectido nos olhos, ávido pela descoberta e pelo prazer de navegar pelo desconhecido. Olhos que vêm, cabos, baterias, carburadores, pistons, tubos e bombas injectoras, análogos aos olhos que vêm frustrações, desejos, sonhos e complexos. Um cruza as mãos atrás das costas e circunda a frente do meu jeep, o outro permanece sentado no seu cadeirão e escreve, escreve…e no fim levanta-se cruza as mãos atrás das costas e circunda a long chaise onde estou semideitada.
Um tem a reprodução da “Nua sentada num divã” de Modigliani pendurada ao lado da sua secretária bem organizada com receituário, um pequeno martelo, um pisa papeis da Marinha Grande, e pequenos blocos de apontamentos com publicidade farmacêutica. O outro tem um calendário Pirelli de gajas descascadas ao lado da sua mesa de trabalho cheia de facturas para pagar, chaves inglesas e chaves de fendas parecendo perdidas, mas que não estão. O pisa papéis é uma roda dentada.
Estou mesmo a ver que é tudo igual. Mecânicas semelhantes em contextos diversos. Análises idênticas em enquadramentos distintos.
Afinal quem somos nós?

In “Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado” Anabela Quelhas

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