Julguei que a mecânica seria uma
ciência exacta, como a matemática, como os cálculos que eu tão bem sabia fazer
na disciplina de física (a estática, a dinâmica e a quântica) (acelerações e
movimentos, forças, peso, vectores, and so on) dentro daquelas salas de calor
constante entremeado com frescas correntes de ar a cheirar a acácia rubra.
Tenho verificado que talvez não
seja bem assim.
Observo os mecânicos, abrem o capô
e coçam a cabeça, embaralhando os cabelos mesmo que eles sejam pente 3,
grisalhos ou negros ou até que nem existam.
O meu psiquiatra também faz o
mesmo. Homem sexagenário de perfil freudiano sentado no seu cadeirão, de olhar
atento e curioso, pronto a descobrir o ninho de cucos que poderá existir em
mim.
Os raciocínios que obrigam a essa
esfregação não devem ser matemáticos, suponho. Tenho reflectido sobre isso,
tenho-me questionada para melhor conhecer o mundo.
Quando falo das minhas fobias,
dos meus sonhos, dos meus pesadelos diurnos e nocturnos, das minhas
inseguranças, o psi afaga a barba e invariavelmente passa disfarçadamente os
dedos levando a sua caneta credenciada entre eles e esfrega a cabeça. Não há
matemática que não se vergue à sua caneta parker rialto (acredito eu).
O que quererá isso dizer?
Será a lógica ilógica das minhas dúvidas
esofágicas que assanham a circulação da cabeça do meu psi?
O mecânico faz igual,
evidentemente com as mãos oleadas em massa consistente, menos elegante,
vestindo um fato de macaco azul muito manchado e com odor a escape, óleo queimado
e transpiração quê bê, mas imbuído do mesmo gestual e com o mesmo brilho
preocupado reflectido nos olhos, ávido pela descoberta e pelo prazer de navegar
pelo desconhecido. Olhos que vêm, cabos, baterias, carburadores, pistons, tubos
e bombas injectoras, análogos aos olhos que vêm frustrações, desejos, sonhos e
complexos. Um cruza as mãos atrás das costas e circunda a frente do meu jeep, o
outro permanece sentado no seu cadeirão e escreve, escreve…e no fim levanta-se
cruza as mãos atrás das costas e circunda a long chaise onde estou semideitada.
Um tem a reprodução da “Nua
sentada num divã” de Modigliani pendurada ao lado da sua secretária bem
organizada com receituário, um pequeno martelo, um pisa papeis da Marinha Grande,
e pequenos blocos de apontamentos com publicidade farmacêutica. O outro tem um
calendário Pirelli de gajas descascadas ao lado da sua mesa de trabalho cheia
de facturas para pagar, chaves inglesas e chaves de fendas parecendo perdidas,
mas que não estão. O pisa papéis é uma roda dentada.
Estou mesmo a ver que é tudo
igual. Mecânicas semelhantes em contextos diversos. Análises idênticas em enquadramentos
distintos.
Afinal quem somos nós?
In “Ensaios de escrita, um
projecto sempre adiado” Anabela Quelhas
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