03 setembro, 2025

Fico em silêncio


 Fico em silêncio 

Dou por mim a consultar diariamente as páginas das agências funerárias. Neste caminho longo que é a vida, chego ao momento de consultar as páginas das agências funerárias, assegurando-me que não há partidas inesperadas que acinzentem o meu dia. Consulta mórbida que me começa a inquietar, nesta fase decrescente da vida, já sem amanhãs esplendorosos.

Os meus pais iniciaram a ladeira da morte há muitos anos, seguiram-se todos os familiares da sua geração e eis que a minha geração se chega à frente, com pressa e de forma muitas vezes inesperada.

Neste deserto tão grande, sem fronteira e sem medida começo a perder primos, amigos, ex alunos e colegas, desenhando assim o deserto mencionado, que mais parece montanha inóspita, em cordilheira insana. Entre suicídios, desistências da vida, acidentes, doenças mais ou menos graves, sobrevivo com o dói aqui e dói ali, por vezes com o entusiasmo afectado, alterando planos, esfaqueando sonhos não realizados desta viagem que nunca me pesou e acharei sempre curta. Uns partilhavam laços de sangue, outros a sua ansiedade criativa no mundo dos rabiscos, outros, o quotidiano sempre diferente de tentar abrir portas para o conhecimento e a cidadania, e outros porque simplesmente se cruzavam comigo no Mundo.

Entre os sonhos de verdade e os sonhos de mentira, fico em silêncio, triste, despedindo-me deste e daquele, em conversa do nunca mais, até sempre e arrumando os caquinhos do meu coração em estante virtual, de casa de arquitecto com muito vidro, ou abrigo simples de musseque com pé no chão, numa cidade qualquer de Cassiopeia, que só existe no meu imaginário, mas onde estão todos os que me são próximos.

Revolvo os meus ficheiros fotográficos, procuro as imagens deste e daquele, entre rabiscos e salas de partilha de conhecimento, que passarão a ser recordados, por ter retido um pouco do presente da vida, confortando-me.

Reforço a resiliência de continuar, porque não sou pessoa de olhar para trás, quem disse que viver é fácil? A VIDA É UM MOMENTO como canta o outro, mas é o que temos e há que aprender a andar neste carrocel tresloucado, que começou já com dor ao nascer, quando nos escancaram as portas para a vida.

Entre a boca que diz, e a mão que escreve, solta-se a palavra “Saudade”, com efeito geométrico e afectivo, em dias de sol, de vento, de chuva ou de noites ao relento. 

Derramo lágrimas, limito vivências com quem já não existe nesta orquestra a que pertenço, e que vai ficando incompleta, mas há sempre quem traga mais um e a luta continua. Entre a dor e a alegria, descubro quem sou, sabendo sempre por onde não vou. 

(texto inspirado em letra de “Canção a Zé Mário Branco”, de A Garota Não, escrito após o falecimento do colega e amigo Francisco, e dedicado a todos os que perdi num lugar chamado Mundo)

Publicado em NVR 03|09|2025