Passei a mão no teu rosto e
senti-o frio e marmóreo numa manhã de dezembro. Gelei a mão no teu rosto
imóvel, confirmando a falta de esperança há muito congelada, num diagnóstico
fatal. Foi numa madrugada gélida, atravessei 2 ou 3 ruas a correr após um telefonema
previsível.
Chorei convulsivamente, num
desenlace aguardado há muito, cavalgado em progressiva demência incontrolada,
em que ninguém entendia nada de nada, onde a medicina mostrou a sua magistral
incapacidade para resolver o teu problema. Mais uma vez senti, que nós, seres
viventes do seculo XXI estamos muitas vezes na idade da pedra e não descolamos.
O teu rosto parecia uma escultura de alabastro, macio e frio… frio de morte.
Despedi-me de ti ao longo de
quase 2 anos, ias deixando de ser tu, conforme as horas passavam. Cada dia
estavas mais diferente e mais ausente de nós, apesar do nosso esforço para que
tudo se tornasse real, fácil e confortável para ti… mas o teu olhar saía da tua
zona de conforto e viajava para o vazio, onde não sei o que existe, nem onde se
localiza. Foi uma despedida dolorosa e progressiva até não me identificar mais
com o corpo de quem tratava, pois ele estava sem alma, inerte e amorfo.
Só fiz o teu luto décadas mais
tarde… ainda o faço, cada vez que escrevo sobre ti.
Coisa estranha a alma separar-se
do corpo com ele ainda vivo. Para onde ela vai? Que estranho lugar é esse para
onde as almas emigram antes do tempo! Assisti a uma decomposição seguida da desconstrução
de ti, hora após hora, dia após dia. Percebi os limites da resistência dos
humanos, percebi o quanto somos frágeis, tomei consciência da forma como
poderemos desejar a morte a quem queremos tão bem – a contradição feita
“pecado” que habita sempre em mim. Nunca mais fui a mesma, perdi frescura e
entusiasmo, nesta inversão de papéis, de quem trata quem. Nunca mais a nossa
família voltou a ser o que era antes, não por tu faltares, mas por a despedida
ser tão longa, tão penosa e desumana, tendo afectado cada elemento. Perdemos alegria,
perdemos brilho e criamos uma resistência brutal às contrariedades da vida…
afinal, ela é tão estranha, com memórias a várias velocidades! Os papéis de cada uma de nós definidos ao
longo dos anos, inverteram-se completamente, deixaste de nos dar “colo” e passaste
tu a precisar dele, num retrocesso diário para um espaço indefinido e tenebroso.
A certeza que cada dia seria pior que o anterior, nunca nos abandonou e preenchia
cada vez mais a esperança que nunca conseguimos possuir. Questionava-me diariamente
sobre o que seria ainda pior. Nada mais voltou a ser igual…. deixou de haver
aquela cumplicidade serena de silêncios, só possível nas mães.
Como lidar com tudo com dignidade?
Como lidar com as situações mais penosas com sentido de humor e entusiasmo para
que não te apercebesses que estavas mal e cada vez pior e pior. As fases
sucederam-se, a perda de voz, a perda de orientação, a perda de movimentos, a
perda da deglutição, a perda da visão, a perda do conhecimento… a fase do colo,
a fase da cadeira de rodas, a fase da cadeira dentro da banheira, a fase dos
resguardos, a fase das fraldas, a fase da rigidez, a fase das sondas e das
seringas, a fase das escaras, a tua pele abrindo e mostrando o interior de uma
anatomia moribunda… a fase da vigilância permanente. O pai não resistiu pura e simplesmente
e sucumbiu de exaustão e desgosto, ainda o problema se iniciava. Todos ficamos
marcados por esta violência que se denomina alzeimer, sentença que te deram
quase 6 anos antes, perante a nossa surpresa e desconhecimento total desta sentença
mortal. Ficou mágoa, revolta, desapontamento e frustração, de uma batalha
perdida de ti, mulher bonita, afável, carinhosa e de gargalhada livre. Ficou uma
textura baça e sem brilho nesta recordação dolorosa do não existir, existindo.
Bj
In “Ensaios de escrita, um projecto sempre adiado”, Anabela
Quelhas
Sem comentários:
Enviar um comentário