Foi um dia feliz, de emoções muito fortes e doloroso também.
Fui com o Mário e com a Gabi. O Mário apanhou-me em frente do Rivoli. Tudo combinado previamente via telemóvel. Ele o mentor do nosso reencontro, recolheu ao longo dos últimos meses os nossos contactos.
-Conheci-te logo! - disse-me ele.
Eu beijei-o alegremente depois de entrar no automóvel.
-Estás igual!
- Tu também, conheci-te logo, quando entrei na rua! Vamos buscar a Gabi e seguiremos para Fão.
- Porque Fão?
-O Aristides mora perto e decidiu irmos almoçar num restaurante de praia.
Encontramos a Gabi, está tão bem, beijei-a emocionada. Falei-lhe duma manif do 1º de Maio em que desfilamos na Portucel, eu, ela e Gorete; já não se recordava.
Éramos um grande grupo heterogéneo, formado aleatoriamente num café da rua do Breiner, no Porto. O grupo foi crescendo naturalmente, o amigo do amigo, que também era amigo ia avolumando o grupo de tertúlia. Juntavamo-nos ao fim do dia em certos dias da semana, ao sábado à tarde e especialmente, sexta e sábado à noite. Uns residiam próximo do café outros não.
O grupo era heterógeneo, cada um frequentava sua faculdade, ou até já trabalhava, numa faixa de idades que oscilava entre os 18 anos e os 30 anos sensivelmente. Tínhamos dois propósitos: amizade e diversão.
Despíamos os problemas de cada curso ou do trabalho e afastávamos ou intervalávamos um pouco as nossas ideologias políticas, para evitar os atritos de maior e conseguirmos um convívio saudável e duradouro. Os exames, as frequências, os projectos ficavam a repousar na casa de cada um. Isto era um grupo de escape à rotina, aos problemas, aos compromissos, às responsabilidades.... O café servia de ponto de encontro, saboreando cimbalinos, meias de leite e outras coisas, fumando muito, partilhávamos a nossa juventude, as nossas fragilidades, os nossos desejos e a vontade de viver a vida. Era um grupo que já vivia os tempos da liberdade pós 25 de Abril e que se encontrava em crescimento /amadurecimento tal com a liberdade.
Jantávamos frequentemente juntos e saíamos para a noite do Porto, uns de boleia dos outros, poucos tinham carro, a maioria vivia de mesada bem esticada durante o mês.
Não importava quem não estava, o que importava era "estar".
Hoje 30 anos depois, sensivelmente, cada um fez um percurso profissional. Clara (educadora aposentada) Anabela (arquitecta e prof), Mário (engenheiro de minas) Gabi (designer gráfica) Gorete III (bancária) Aristides (médico) Alzira (serviço de catering’) Cajó (bancário) ….Foi um dia de afectos, traduzido nos abraços que demos, nas nossas carícias de olhar, sim os vossos olhares, senti-os como carícias. Os nossos cérebros certamente fizeram uma ginástica tremenda entre o passado e o presente... o presente... o passado...
Faltou ainda muita gente que tentaremos encontrar e virão certamente nas próximas vezes.
Este foi o 3º encontro, a mim só me encontraram agora.
De repente eu estava nos braços da Gabi
De repente eu estava nos braços da Clarinha,
De repente eu estava nos braços do Aristides… que abraço grande que nos demos, tentanto estreitar e engolir os 30 anos passados, grande, grande, vigoroso, apertado, gostoso… pelo caminho já tinha falado com ele pelo telemóvel alta voz do Mário.
– Aristideeeeeees, ainda tens um dente amovível? – faltam-lhe, o bigode enorme e os caracóis louros.
A cada um, eu pedia o “curriculum” – qtos casamentos, qtos filhos e o que se passou em 30 anos. O balanço dos afectos é “desastroso”, excepto a Clarinha (união feliz com Fernando) e a Gabi (eternamente consciente – solteiríssima sempre). Tudo o resto oscila entre casamentos e divórcios, pelo menos uma vez.
A Gorete I , a nossa Gorete suicidou-se. Neste grupo existem 3 Goretes, parece que o “destino” reforçou esse nome prevendo grandes danos com uma delas. Recordamo-la...contaram-me sobre ela, os últimos que a viram ou que falaram ao telefone. Decidiu não viver mais em sofrimento, num acto de grande coragem, devido a um problema de saúde grave. Contei também como a procurei e como soube.
Eu precisava visceralmente desta reunião de amigos, para me ajudar a fazer o luto da nossa Gorete. Acho que precisamos todos. Lembrei-me por diversas vezes do filme “Amigos de Alex”. Também nós estávamos aqui a recordar a Gorete, para nos mimarmos sobre a sua falta, para nos confortarmos, para conseguirmos algum equilíbrio perdido, para não nos perdermos mais uns dos outros. Por vezes eu colocava os óculos escuros e permanecia em silêncio, de resto notado por alguns que tentaram despertar-me.
- Como é que tu não tendo vícios (café, alcool e tabaco), és uma mulher tão interessante? Bajulou-me o Aristides, talvez para me despertar dum desses momentos. Rimos todos. Aristides tu és único, nunca mudes!
- Ouviram, ouviram…. Ele acha-me interessante – risada geral.
Mal acabamos os nossos cursos instalou-se a vontade de cada um investir nas suas profissões, de se realizar nas mesmas, de constituir família, afastando-nos geograficamente e perdendo-nos.
Andamos perdidos décadas… eu, 30 anos.
Não havia telemóveis, e todos se conheciam apenas por um único nome… apelidos era coisa que nem nos passava pela cabeça que poderiam vir a ter alguma utilidade.
Recordamos a Gorete, recordamos-nos a nós, numa sintonia bonita de ver e de sentir. Parece que os nossos afectos permaneceram intocáveis, como se nos tivéssemos visto no dia anterior. Senti-me feliz, apesar de tudo.
Observamos fotos antigas - todos mais novos, mais bonitos, com grandes bigodes, os rapazes, delicadas e frescas, as raparigas.
Vi uma foto tirada em Lagos (nós três tão bonitas num final de tarde, preciso dessa foto – eu Clara e a outra Ana- eu moreninha com uns óculos à Janis Joplin). Falamos do nosso campismo em Lagos, da viagem de ida (Porto-Lisboa viagem nocturna dos Clérigos, Castelo Branco, Pastelaria Suiça em Lisboa, Porto Côvo e finalmente Lagos, dentro de uma Diane), daquela tenda colectiva em que não havia lugares marcados, o lugar para dormir era segundo a ordem de recolha de cada noite – Gorete e Claudino (namorados), Clara, Anabela, Aristides e Lúís, estes dois normalmente só chegavam já de dia. Falamos da praia, da diversão diária e nocturna na discoteca ELÉCTRICO, gozávamos como se fosse o ultimo dia das nossas vidas.. Rimos por a Gorete se chatear connosco, devido às desvantagens de se fazer férias com o namorado, eheheh, rimos da contínua ocupação do Luís e Aristides em orientar as alemãs…. Recordei na minha cabeça, a praia de naturismo, o Jorge, o Carlos e a sua caldeirada de peixe, única, feita pelos pescadores de Lagos, o meu reencontro com alguém de Angola, as danças frenéticas, o encontro com o luar de Agosto à beira mar..
Do Porto, a nossa cidade do coração, recordamos alguns jantares e o apartamento da Clara, que servia de abrigo no final das nossas incursões nocturnas. Os mais dorminhocos e claro a dona do apartamento iam para os quartos, os resistentes que ainda queriam conversar e ouvir musica na companhia dos outros, dormiam no chão da sala - eu habituada a directas a trabalhar, pertencia sempre aos resistentes. Fazíamos lutas de almofadas, parecendo garotos. O Luís tinha uma pedalada de conversa até todos adormecerem.
Revivemos as festas na garagem do Cajó… as fotografias de um Carnaval, onde o Álvaro (desaparecido ainda, espero que só temporariamente desaparecido ), se pintou todo de dourado, e eu com umas pestanas enormes colocadas pela Clara. Falando no Álvaro direccionamos o canal memória para o teatro TUP, onde alguns de nós experimentou as artes de Talma e onde conhecemos o Óscar Branco e a irmã, e o ensaiador João – eu com uma permanência muito curta… os projectos ocupavam-me o tempo todo. A Gabi recordou o edifício SICAP.
Falei do Rui Nogueira e do Zeca, meus colegas da ESBAP, que pontualmente saiam também connosco, e do café campismo de Montes Burgos – outra plataforma de alguns de nós. O meu almoço com ele na semana passada, vindo de Tavira, que foi uma loucura.
Referimos o uso e abuso que fizemos do pub do Hotel Infante D. Henrique no 16º andar.
- Foi aí que conheci o meu ex-marido!- dizia a GoreteIII.
Uma pista de dança com uma vista soberba para toda a cidade do Porto que todos tinham o privilégio de usufruir. Éramos uns privilegiados por podermos viver aquele espaço, projectado pelo arquitecto Rica.Tanta vez subimos e descemos aquele elevador! Tanta vez que dançamos naquela pista!
Falamos do Arnaldo, foi ai que o conhecemos.
_ Quem é o Arnaldo? questionaram alguns.
Avivaram-se memórias. Últimamente encontro o Arnaldo regularmente.
Falamos da Milú, do Joãozinho, da Carmo, da Claudina, da Ana, do Jorge, do Luís e do outro Luís, do Manel Neto, do Augusto, e de outros que faltaram, mas estão localizáveis. Este continuará a ser um grupo com as mesmas características, dificilmente estaremos todos, todos reunidos, porque o grupo é enorme… o que interessa é estarmos os que estiverem.
Falamos com a Milú no telemóvel. Trocamos informações.
Lembrei o apartamento da Ana na rua do Breiner, onde o Cajó se vestia com as roupas dela, bandolete, molas da roupa nas orelhas e depois se passeava divertidamente, pela rua do Breiner e rua Miguel Bombarda. Ele era sempre o mais animado e louco de todos. A Ana casou com o Jorge. Lembrei também as experiências exotéricas dos dois Luíses e Manel Neto, deitados na cama da Ana, a tentar levitar e viajar fora do corpo….loucos varridos!!!
Perguntei pelos colegas do Aristides, e um especial que para mim tinha uns olhos irresistíveis! Eheheh, médico algures.
Olhamos as fotos uma e outra vez , e outra vez, e o nosso olhar entristecia ao ver o rosto alegre da nossa Gorete. Brindamos aos presentes duas vezes, mas foram dois brindes cansados e emociados por 30 anos de experiencias diversas, não partilhadas e muito amadurecimento.
Foi uma óptima ementa, escolhida pelo Aristides. Escolheu um restaurante junto à praia , muito agradável, para que alguém que levasse os filhos pudesse usufruir do sítio. Aristides não tem filhos e esqueceu-se que os filhos dos outros têm mais de 18 anos, já não brincam na praia nem saem com os pais. Acho adorável esta desordem do raciocínio do Aristides !!!!!!!!!!
Eu e o Mário despedimo-nos e regressamos ao Porto, os outros ainda ficaram. Ficou marcado próximo almoço e entretanto pretendemos continuar a divertirmo-nos, desta vez no Porto, sempre que estiver por lá, para que os nossos encontros ultrapassem a fase da recordação e continuem a ser momentos vividos em pleno com novos episódios.
A sós com o Mário, foi possível partilharmos situações mais pessoais das nossas relações afectivas que por sinal e estranhamente coincidem em tantos aspectos.
Regressei a VR e pelo caminho foi inevitável reflectir sobre este dia especial. Somos uma geração de grande riqueza interior, temos em comum tanta coisa boa! Temos a nossa vida afectiva um pouco perturbada, mas isso dá-me a certeza que não somos pessoas conformadas e lutamos para estar bem connosco e com a vida.
Todos me pareceram chocados com o suicídio da nossa amiga e todos carentes desta grande amizade que nos une e ficou adormecida tantos anos.
Todos parecemos pessoas crescidas, amadurecidas, profissionalmente realizadas, autónomas, mas todas evoluíram no meio de frustrações, desejos, contradições… e é isso que somos hoje.
Gostamos da companhia uns dos outros, pois todos nos aceitamos como na verdade somos, seres imperfeitos, como semelhanças e muitas diferenças, defeitos e qualidades. Já não temos tanto sangue na guelra, mas continuamos heterogéneos, queremos estar juntos, resistimos a tanta coisa, respeitamo-nos. Cada um carrega consigo a sua história, que o distingue dos outros, mas com intersecções, com zonas de coincidência que todos entendemos como comuns.
Precisamos do ombro de cada um, para chorarmos e para sorrirmos.
Deixem-me acreditar que precisamos.
Até breve.
Anabela Quelhas
1 comentário:
O melhor. Os amigos!
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