09 abril, 2021

Como vais Jacinto?

Como vais Jacinto?

 

              Numa sala de jantar organizada segundo a tradição, onde tudo deveria estar no sítio certo, reinava o silêncio modorrento de uma tarde soalheira, matizada pelos tons quentes da decoração, mistura cromática queirosiana, feita de cortinas e tapetes carmim, com os raios de luz projectados através das janelas que davam para o jardim da entrada.

              De franja, com duas trancinhas e de soquetes brancos, eu e o meu pai, de mão na mão, aguardávamos o senhor doutor.

              Aguardávamos em silêncio, estávamos numa casa de saúde, onde o barulho não era permitido e todos caminhavam com pés de veludo. O silêncio era enriquecido pela localização dessa grande casa, mistura de casa de quinta e clínica, na periferia da cidade de Vila Real. O barulho urbano mais persistente, que eventualmente chegava até lá, seria resultante do motor de algum carro de aluguer, conhecido como carro de praça, que transportando alguém necessitado de cuidados médicos, na falta de um hospital decente e público, percorria o estreito caminho de acesso e finalmente estacionava no jardim, dando seguimento à sinfonia do silêncio reinante, que se estendia até ao rio Corgo.

              Ouvia-se o nosso respirar recortado de forma regular pelo pêndulo obediente do relógio de sala. O tic, tac, tic, tac, tic...,

                                          ia embalando a minha consciência, desconfigurando o tempo, deformando a noção dos minutos que passavam, mas oferecendo-me um grande aconchego hipnótico, que perdurou até hoje na minha memória.

              Antes de conhecer o Dr. Otílio, foi-me apresentado o seu auto-retrato, localizado numa das paredes dessa sala, entre aparadores e vitrines. Com três anos de idade, achei o seu retrato, quase à escala natural, uma pintura gigante. A figura do médico, de bata branca, acompanhada pelos inseparáveis bigodes e cabeleira, indomáveis, era maior do que todas as representações pictóricas que eu tinha conhecido durante a minha curta existência. Aproximei-me, pus a minha mão de petiza, admirei cada pormenor. Achei o doutor simpático, mas escondi a minha chupeta cor-de-rosa, como medida de precaução — diziam-me que os senhores de bigode não gostavam de chupetas, na esperança de eu ir largando esse vício infantil.

              Continuei a observar a tela, as pinceladas, as texturas,…  mas eu tinha que olhar para cima e não chegava com a mão ao seu rosto.

              O meu pai pegou-me ao colo. Dei-lhe a chupeta para guardar no bolso, pois achava que seria mais seguro ser o meu pai a guardar o objecto de tão preciosa dependência, já que ao colo estaria ao nível dos bigodes do doutor — não fosse acontecer alguma surpresa com esse pedaço de parede que tinha bigodes e que era tão semelhante à realidade.

              Tic, tac,... tic, tac,... tic,...

              — Não mexas no retrato! O senhor doutor foi quem pintou o seu próprio retrato — disse o meu pai. — Ele pinta muito bem, podes olhar, mas não deves mexer.

              — Mas ele é médico, trata os “dói-dóis”!? — surpreendi-me, não conseguindo conciliar, no meu raciocínio infantil, estetoscópios, pincéis e tintas. A bata branca deveria ter alguma utilidade: eu veria as minhas irmãs a usar bata no colégio, mas isso seria uns meses mais tarde.

              Usava a bata branca porquê? Como é que ele pintava e olhava para ele mesmo? Ignorava os truques dos adultos na reflexão das imagens através de um espelho. O meu pensamento tinha dificuldade em gerir toda esta informação com a preguiça e sonolência inconscientemente resultantes da combinação infalível do calor, ao compasso do tempo emitido pelo relógio de sala e do aconchego do colo confortável do meu pai.

              Talvez tenha adormecido, ou a memória engoliu o tempo e as imagens da restante espera, misturando-os com outras esperas na mesma sala, ocorridas noutros dias e com outros propósitos. Não sei...

              — O Otílio já vem aí! Então pequenita, queres um rebuçado? — perguntava-me uma simpática senhora de cabelo armado e bem penteado, que sorria para mim e que tinha ido avisá-lo da nossa presença.

              — Não obrigado, ela não quer — agradeceu o meu pai.

              — Quero, quero pois! — opus eu, manifestando uma total ausência de cerimónia perante a família que acabava de conhecer, deixando o meu pai desarmado, perante essa desobediência descarada.

              Passaram-me os rebuçados.

              — Agradece. Diz: obrigada prima Estela — ensinou-me o meu pai.

 

              Entretanto uma figura quase silenciosa assomou à ombreira da porta de mãos cruzadas atrás das costas. Os meus olhos curiosos fixaram-se imediatamente nos seus bigodes. Sob estes, emergia um sorriso afável, franco e quase do tamanho do mundo. Os seus cabelos eram revoltos, mas belos.

 

              — Como vais Jacinto?

 

              Abraçaram-se os dois, num abraço de reencontro de dois continentes, feito de algumas cumplicidades, que se repetiu muitas outras vezes, encerrando histórias antigas, vivências comuns, ideais de liberdade partilhados e outros assuntos, nessa época, vedados ao mundo das crianças.

              Dois homens com dois destinos, cujos caminhos se cruzaram diversas vezes. Ambos sérios, íntegros, inteligentes, bonitos e amantes da liberdade. Um licenciou-se em medicina e estudou no conservatório de música, o outro apenas frequentou a 4ª classe e tocava, de ouvido, uma gaita-de-beiços e um violão. Um teve infância e adolescência, o outro passou directamente da infância para a idade adulta, porque ficou cedo sem o pai — as diferenças do dinheiro, no tempo em que, quanto mais ignorante, melhor. Apenas a resiliência era qualidade que fazia vencer.

              Anos mais tarde descobri que se tratava de uma pintura de autoria de Heitor Cramez, e não um auto-retrato, mas as emoções não se alteraram.

In ”Ensaios de escrita: um projecto sempre adiado”, Anabela Quelhas (homenagem ao escritor, médico, músico, caricaturista e pintor Dr. Otílo Figueiredo) 19/09/2009

In "O fato que nunca vestimos" Anabela Quelhas 2017

5 comentários:

João Carlos Carranca disse...

5 estrelas

rita disse...

Ana, que texto delicioso! Pq não escreves mais vezes? Ou antes porque não nos deixas ler o que escreves?
bbbbbbbbbbbj

Anónimo disse...

Que pena não ter conhecido essa referencia de Abril.

Pena disse...

Oh, Fascinante Amiga:
"...O meu pensamento tinha dificuldade em gerir toda esta informação com a preguiça e sonolência inconscientemente resultante da combinação infalível do calor, o compasso do tempo emitido pelo relógio de sala, e o colo confortável do meu pai.

Talvez tenha adormecido, ou a memória engoliu o tempo e as imagens da restante espera, misturando-os com outras esperas na mesma sala, ocorridas noutros dias e com outros propósitos. Não sei..."

Um soberbo e delicioso texto poético que enternece e maravilha.
Fabuloso.
Também eu conheci o Sr. Dr. Otílio e esta Clínica.
Os meus mais sinceros parabéns por tanta pureza e beleza...
Majestoso. Pleno. Que preenche e deslumbra.
E, não sabias tu escrever...memórias...?
És simplesmente, BRILHANTE! Cintila a tua fantástica escrita divinal. Digo, Celestial.
Beijinhos amigos.
Com forte estima e respeito.
Sempre a ler-te atentamente...

pena

Adorei!
Espero que cries mais belos instantes como este.
Extraordinário, amiguinha linda!
Fabulosa.

INDIE disse...

nao acredito que o avô tivesse dito "não obrigado, ela não quer"...

bjinhos