07 fevereiro, 2024

Viver melhor depois dos 60, significa trabalhar?

 


Viver melhor depois dos 60, significa trabalhar?

Não consigo ficar passiva perante aqueles que defendem que se deve adiar a idade da aposentação, porque a esperança de vida aumentou, e é preciso conferir qualidade de vida aos mais velhos através do trabalho.

Apresentam-se argumentos financeiros disfarçados e algumas ratices para ver se a coisa pega. Apela-se à vida saudável, à mão-de-obra experiente e especializada, ao saber desperdiçado, às aspirações e à realização pessoal /profissional depois dos 60, desenvolvendo o conceito de que trabalhar dá saúde e faz crescer.

Penso que querem fazer de nós totós! Querem fazer crer à malta que os aposentados ficam sentados numa cadeira pasmados para o infinito, e isso deve-se a não terem trabalho, horários, responsabilidades e a não darem o corpinho ao mundo laboral.

Tadinhos dos velhinhos que não lhe permitem uma realização profissional após os 60 anos! Durante mais 40 anos de trabalho, não se realizaram, mas depois dos 60…

Este discurso altamente tendencioso e demagógico é vergonhoso e ofensivo. Estes peritos em envelhecimento, não se preocupam com os problemas dos trabalhadores na vida activa – se são bem remunerados, horário semanal respeitado, estabilidade no emprego, competição saudável, salários pagos a tempo e horas, gratificações, progressões nas carreiras, pausas, respeito pelas mulheres grávidas, formação e outros assuntos do mundo laboral pouco focados e respeitados, mas depois dos 60, os indivíduos no trabalho, estariam em condições para lhe comerem a pele, a chicha e os ossos. Haja vergonha!

Na idade da aposentação, em Portugal tardia, as pessoas querem descansar, não ter grandes responsabilidades, não ter horários para cumprir, fazer o que lhes apetece e ter uma aposentação que lhes permita ter uma final de vida despreocupado e de qualidade.

Esperança de vida maior não significa que o ser humano deixou de ter problemas de saúde. A maioria, a partir dos 60, tem problemas físicos e aqueles que tiveram uma vida profissional activa, mesmo activa e desgastante, chega aos 60, arrasada. Sabemos que os idosos não são todos iguais, por isso a generalização é perigosa.

Quem lava escadas durante 40 anos, quer continuar a trabalhar?

Os trabalhadores da saúde, a fazer horários irregulares, a tratar sempre de doentes, com grandes níveis de stress, querem continuar?

Os policias com a vida em risco diário, querem continuar?

Os professores que tentam educar os filhos dos outros durante 40 anos, de mala às costas numa parte da sua carreira, sendo alvo frequente de má educação por parte de alunos, querem continuar a trabalhar?

Os empregados de café, cozinheiros, todo o dia em pé, os primeiros a aturar as esquisitices dos clientes e os segundos todos os dias a cheirar a alho, óleo fula e a estrugido, querem continuar?

Os agricultores, sempre dependentes do tempo e dos agentes atmosféricos, todos os dias a cavar a terra, querem?

Os lixeiros, os advogados, os militares, os operários, os arquitectos, os pescadores, os motoristas… independentemente da profissão, há um desgaste progressivo e saturação, incompatível com as condições físicas que se vão degradando.

Morremos mais tarde, mas morremos doentes. A medicina, felizmente, evoluiu, mas a carcaça é a mesma, ou seja, agora é possível estar doente mais tempo.

Curiosamente, os que defendem o trabalho para os idosos, são pessoas com vida activa muito passiva, passam pelo mundo do trabalho de forma confortável e pouco stressante. Ir trabalhar é como ir tomar café, nem se questionam se os jovens precisam entrar mais cedo no mundo do trabalho e auto-avaliam-se por excesso, sobrevalorizando o seu saber e a sua experiência, não percebendo, por vezes, que o tempo deles já passou e que estão desactualizados a fazer figurinhas deprimentes. Há algo denominado voluntariado, para onde podem ir dar o litro, porém, não queiram arrastar os outros para este caminho.

Sobre aposentação considero 3 questões:

- Os 60 anos deveriam ser a idade limite ou 35 anos de descontos;

- É urgente criar a longo prazo um plano sério de sustentabilidade do sistema que contrarie aposentações tardias;

- É fundamental apoiar a 3.ª idade ao nível do conforto e da tranquilidade – contrariar e condenar todo o tipo de violência contra idosos, criar lares com boas condições e acessíveis para todos, assistência médica gratuita, apoio domiciliário, formação, criar oportunidades para viajar, conviver e, obviamente, para quem quer trabalhar mais, poder fazê-lo desde que isso não crie vícios no mundo laboral, nomeadamente reduzindo oportunidades de trabalho para os mais jovens. O voluntariado referido atrás também é um cenário possível, mas perigoso dentro de certas circunstâncias, quando se transforma em mão-de-obra gratuita.  

Vivemos uma sociedade com exigências crescentes sobre os indivíduos. Descansar passou a ser considerado um obstáculo ao sucesso. Os momentos de lazer entram nessa lógica: existe uma pressão para se diminuir o máximo possível do tempo livre em todas as idades e a aposentação é algo que complica esta lógica sombria do que é viver, desumanizando-nos.

É urgente democratizar o ócio. Isto já era tema nas sociedades gregas e romanas antigas. Para Platão e Aristóteles, “o ócio era visto como condição necessária para que alguns, designadamente os filósofos, pudessem, livremente, dedicar-se à procura da verdade, encarada, essa, sim, como “prática” autenticamente nobre.” O ócio não pode ser associado ao tédio, à malandrice, à depressão, à inutilidade e ao vazio. Penso que não há registo de que o ócio tivesse sido causa de eventual exaustão e, por esse motivo, dando origem a qualquer tipo de síndrome de Burnout!

Deixem viver os idosos como querem, sem pressão, sem compromissos e sobretudo abram-lhes portas para novos voos, novas oportunidades, novos saberes, para o mundo da criatividade, sem interferir no mundo do trabalho e facilitem a convivência com a família e com os amigos, de forma DIGNA e HUMANA.

Os idosos são mais frágeis, mas não são tolos! E se eles quiserem ser pasmados e inactivos, têm o direito de o ser. Respeitem a sua liberdade e conforto!

Publicado em NVR 07|02|2024

5 comentários:

Ana André disse...

Assertiva, como sempre! Excelente artigo! Parabéns! 👍👌🤗

Anabela Quelhas disse...

Obrigada Ana. Beijinhos

Adília Martins disse...

É verdade, chegamos aos 60 a arrastar o corpo cansado, a perna que dói, o joelho que não dobra, as costas com hérnias…enfim.
Que trabalhem os políticos, esses sim vivem frescos como as alfaces, sem rugas aos 70 anos. O único problema deles é ficarem senis e amnésicos.

Anónimo disse...

Continuo a ler-te à quarta-feira. Parabéns.

Anabela Quelhas disse...

Adília, só quer trabalhar quem tem vida mansa.Beijinho