08 julho, 2020

As palavras estão cada vez mais chiques


As palavras estão cada vez mais chiques
            Quando escrevi o meu último livro, não sabia como referir-me aos mais escurinhos, se devia chamar-lhes, negros ou pretos, para não ferir ninguém e para não ser conotada como racista, colonialista, exploradora e sei lá o que mais.
            Os conceitos vestem-se de palavras, distraindo o observador do seu verdadeiro conteúdo. Finge-se com o palavreado, para se alinhar no politicamente correcto. Tudo fica com mais brilho, mais digno, mais clean, muito mais chique… mas tudo é mesma coisa. A pompa das palavras, bem espremidinha, como se costuma dizer, o que dá? Mais do mesmo, mas pronto!
            Mudam-se as palavras, o conceito permanece.
            A palavra forte, aborto, substitui-se por Interrupção voluntária da gravidez – 3 palavras para substituir uma só e que não dá jeito nenhum para insultar.
            —Tu és um aborto!
            Tem impacto!
            — Tu és uma interrupção involuntária da gravidez!
            … já não é a mesma coisa.
            Eutanásia, seria algo criminoso, morte assistida é mais tolerável.
            Na escola, os mal-educados e irrequietos passam a ter comportamentos disfuncionais hiperactivos. Na escola não se pode dizer que um aluno é pouco inteligente, deve dizer-se que possui dificuldades de aprendizagem… assim como, ele é um baldas ou um calão, deve dizer-se que tem interesses divergentes da escola. Os desatentos, têm deficit de atenção.
            Bicho do mato — pouco sociável.
            Cego — invisual
            Alguém que tem uma opinião política diferente da maioria, diz-se que investe numa política fracturante. Se tomou uma bezana, ficou embriagado ou até ébrio, dando um ziguezagueado muito mais delicado.
            As mães solteiras passaram a ser autoras de produções independentes e, mais actualmente, geram famílias monoparentais.
            Os amancebados já não são criticados pela sociedade, passando a ter uma união de facto.
            Os patrões e chefes passam a líderes, e os operários, a colaboradores.
            Contínuos — assistentes operacionais;
            Caixeiros viajantes — técnicos de vendas;
            Deixei de ter criada, passei a ter empregada doméstica, depois funcionária de limpezas e hoje tenho uma auxiliar de apoio doméstico.
            O salva-vidas é hoje o nadador-salvador.
            O careca passou a ser um paciente de alopecia.
            Drogado é toxicodependente.
            As fábricas convertem-se em unidades de produção.
            O analfabetismo passou a iliteracia, e a teimosia, passou a resiliência.
            O cócó passou a ser resíduo sanitário sólido. A escolha dos cócós, gestão de resíduos sólidos.
            Esterquice — poluição;
            Lixeira — aterro sanitário.
            As cadelas já não estão com o cio, estão em fase de acasalamento e reprodução.
            O aleijado assume-se como deficiente motor, o gajo irritante, instável e neurótico, que tanto ri como chora, passou a bipolar.
            Asilo — casa de repouso ou lar da 3ª idade. A mitra — casa de acolhimento.
            A cadeia, já não é cadeia, porque pode traumatizar, é estabelecimento prisional e quem lá vive, é alguém provisoriamente privado de liberdade.
            As palavras estão cada vez mais chiques e mágicas, calçam sapatos de verniz, vaporizador contra o mau hálito e muita laca no cabelo. Palavras que tornam a realidade mais leve e mais motivadora.
….
            Escolhi negro em vez de preto, mas não sei se fiz bem, afinal chocolate preto é bom, lista negra, é mau. Feijão preto é bom, mercado negro é mau.
            Palavras chiques em salto alto.
Publicado em NVR 8/07/2020

2 comentários:

Conceição Videira disse...

eheheheheh

Anónimo disse...

Adoro-te