06 novembro, 2019

De fado não gosto



De fado não gosto     
         De fado não gosto, nem desgosto. Não me diz nada. Pronto! Não gosto mesmo. Lamento decepcionar quem me lê, mas não aprecio fado.
         A primeira vez que escutei e vi, foi através da RTP, em registo a preto e branco; depois acompanhei os meus pais para ver “Capas Negras”, o famoso filme português com Amália Rodrigues, como actriz, no tempo em que a voz e a articulação mandibular se descoordenavam facilmente, e finalmente tive o trauma dos traumas, durante três semanas, num concurso de montras do Natal, um estabelecimento comercial candidato localizava-se no R/C do edifício onde eu habitava, homenageou Amália Rodrigues e tive que suportar diariamente o fado da Mariquinhas, foi no Domingo passado que passei, à casa onde vivia a Mariquinhas… e passei-me.
         As minhas preferências melódicas identificam-se mais com as “pedras rolantes” e toda a rockalhada posterior, ficando difícil comover-me com as histórias dos amores empedernidos, das desgraças da vida, que fazem chorar as pedras da calçada, retratadas no fado. Não tenho sensibilidade apurada a esse ponto. Aprecio Brell, Reggiani, Cohen, mas fado, fado, não. Fico até um pouco constrangida quando estou em Lisboa e me convidam para ir a uma casa de fado e eu recuso, confessando este meu defeito, porque de facto o fado choradinho…. Nada!
         Vem sempre alguém dizendo ah mas a Mariza, ah mas o Rui Veloso também canta, ah mas … Naaa isso não é a mesma coisa, não se pode meter Fernando Farinha, Marceneiro e Amália no mesmo saco da Mariza, da Ana Moura e da Carminho e muito menos comparar com Rui Veloso.
         Aprendi a admirar a AMÁLIA por entender que ela deveria ter valor, por ser conhecida em todos os países e se tornar um ícone de Portugal. Comecei a achá-la simpática pós 25 de Abril e interessei-me sempre pelas suas histórias mais pessoais, onde Amália revelava a sua sensibilidade, autenticidade e generosidade – conta-se que no fim dos espectáculos, daria de beber à dor e gostava de criar momentos para cantar gratuitamente para quem não podia comprar bilhete para os seus espectáculos. Gostava das entrevistas dela, por fazer questão de falar nas suas origens humildes. A “nossa” Amália, no tempo da outra senhora, conseguiu abrir caminhos, nem sempre fáceis de percorrer. A partir de 1962 canta Alain Oulman e outros grandes poetas portugueses, dando algum trabalho à censura portuguesa, e abre portas para locais com glamour em diversos países. Eu comparava-a à Maria Callas (reconheço que também não gosto), uma Sinatra no feminino, sei lá. A minha admiração sempre foi muito enigmática, devido à minha insensibilidade perante essa expressão musical chamada fado. Sempre gostei da sua postura sorridente, de já aposentada e que cantava em situações especiais, já não cantando a letra toda ou porque já não se lembrava, ou porque já não lhe restava paciência. Adoro o boneco inventado por Joaquim Monchique.
         Quando faleceu, surpreendeu-me o funeral com milhares de pessoas na rua, transmitido pela TV. Depois foi para o Panteão. Visitei o Panteão posteriormente, para entender a polémica de ir ou não para aquele local, que dividia os portugueses. Fui e não gostei. Deparei-me com essa modernice de colocar a gravação voz de Amália, a cantar em contínuo e em volume elevado, dentro daquele edifício grandioso, um pouco vazio e muito fúnebre, perturbando os ilustres depositados nos seus túmulos. Se querem saber achei deprimente.
         Esta semana tomei conhecimento acerca de uma investigação realizada pela revista Visão sobre esta figura, tendo comprovado que ela teria apoiado financeiramente algumas famílias de presos políticos antes da revolução, portugueses exilados e amigos antifascistas. Reconheço-lhe atitude generosa, grandiosa e perigosa. Percebi que viveu no fio da navalha, entre o estrelato do regime e “os cortinados de chita às pintinhas”, tentando equilibrar de forma inteligente, mas muito perigosa, a uma dupla postura que lhe poderia ser fatal.  
Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar
Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria
Foi de noite numa noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia.
Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
E ao menos ouves o vento
E ao menos ouves o mar.
David Mourão Ferreira / Alain Oulman

Publicado em NVR em 6/11/2019

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