12 janeiro, 2021

A Anita e o frio


 

ANITA E O FRIO

          TRRRIIMMM, toca o telemóvel imitando o velho despertador. São 7h30 da manhã, converso com a minha almofada numa tentativa de a convencer a adiar o meu treino matinal na passadeira.

          Levanto a persiana: Uau que lindo! Tudo branquinho, que maravilha! Paisagem maravilhosa!  Não é neve, mas é gelo. Paisagem digna da tela do melhor artista plástico. Este cenário merece uma saída para ver o Alvão nevado e tirar umas boas fotografias. Devo agasalhar-me.

          “Fui ver. A neve caía | do azul cinzento do céu, | branca e leve, |branca e fria...|- Há quanto tempo a não via! | E que saudades, Deus meu! |” Augusto Gil

          Tento lavar os dentes e reparo que a água reduziu a pressão e apenas escorre um fio de água. Visto-me, vou em 7 mangas, pareço uma moçoila do rancho da Nazaré com 7 saias prontas para dançar “Não vás ao mar Tóino” - camisola interior de algodão, camisola transparente de aquecimento, camisa de flanela, camisola de lã fina, camisola de malha polar, casaco de malha polar e finalmente o casacão kispo; meia-calça, ceroulas, pijama e calças; 3 meias e botas com isolamento térmico; gorro, cachecol e luvas.

          Saio, passeio pelos jardins aqui de casa, para ver os cristais a revestir as plantinhas. A natureza é bela! Parece uma grande  escultura em gelo, tudo tão rígido,  tão perfeito, tão inerte,  tão silencioso e tão poético!

          “A neve pôs uma toalha calada sobre tudo.” (Alberto Caeiro)

          Pestanejo, deixo de ver com nitidez, a minha lente de contacto enrijece com o frio, vira cristal e cai. Plim!

          Olálá, coloco os óculos e a máscara.

          Solta-se da lateral da máscara umas nuvenzinhas de vapor, conformo respiro, que se vão diluindo no ar gélido.

          Olha a roupa que está a secar!!! Parece o bacalhau do Natal, que giro!!! O Inverno é lindo e cheio de surpresas. É tudo obra do Grande Arquitecto que inventa assim umas paisagens celestiais, para agradar aos humanos.

          Sinto comichão nas mãos e nos pés, são as frieiras a galopar nos meus extremos. Ok, Anita esquece, não interessa nada! Olha que lindo o sincelo, os campos geados. Bela a natureza. Tudo tem uma razão, este gelo mata as pragas.

          De repente estou no chão. Diacho escorreguei no pavimento gelado. Pôssa lá foi a artrose da anca! E a agora levantar? Pareço uma bola com tanta roupa. Pronto fui descuidada. Ânimo.

          Ora vamos lá fotografar o Alvão. Que querida esta massa polar que nos faz ter paisagens deslumbrantes e alvas!

          Olha uma estalactite linda, que escorrega naquele tubo da água, parece uma franja rendada suspensa de um tubo. Lindo! - Anita a sentir-se uma privilegiada ao ver estas maravilhas no seu jardim.

          Que belo é o Inverno!

          Anita continua a admirar o tubo e de repente olha para o contador da água - grande bloco de gelo à volta do contador, fonix, afinal a água congelou e rebentou o contador… por isso fiquei sem água para lavar os dentes!!! Como é possível?! Mas ninguém morreu e nada me vai estragar esta bela manhã, alva como o linho.

          Entro no jeep, coloco o cinto de segurança com alguma dificuldade. Porque o meu perímetro abdominal aumentou consideravelmente. Estou um pouco chateada com a porcaria do contador da água. O gelo afinal não é tão bonito assim.

          Olho para os vidros, estão todos brancos e opacos com o gelo.     Ligo a chaufagem.

          Nep, não dá Anita!

          O que faço? Será melhor deitar um pouco de água.

                    água, onde ? os tubos estão congelados.

          Começo a falar para dentro de mim mesma, dialogando monossílabos com a minha Anita interior. Não é bom sinal.

          Água, água, humm, vou buscar um garrafão de água do Luso.

O quê? tenho os garrafões vazios? Ok serve água das pedras, deve dar na mesma. Despejo duas garrafas de água das pedras sobre o gelo, que repousa sobre o vidro do Jeep, só falta o limão, até faz espuma, com o gás, parece um “pneu”, bebida que tomo nas esplanadas de verão. O gelo compactou na mesma.

          Anita está a  perder a paciência, e lembra-se de algumas asneiras triviais que se infiltram por vezes na sua vida pacata. Tenho que arranjar um líquido quente! Como vou fazer isso?

          Vou à despensa. Só vejo coca-cola, leite e muitas embalagens de ice tea.

          Vai de ice tea, coloco-o na chaleira, vou deitando o líquido quente açucarado, em panelas e canecas e vou despejando sobre o vidro do carro.

          Finalmente surge um buraco entre o gelo. As coisas compõem-se. Ligo o motor do jeep, continuo com dificuldade em apertar o cinto, pareço uma esfera, grávida de tanta roupa, confesso que me sinto menos optimista com este percalço.  

          Não consigo virar o pescoço, devido às muitas voltas do cachecol de lã,  tenho que fazer a manobra olhando apenas pelos espelhos retrovisores que não os vislumbro. O ice tea só deu para o vidro da frente. Utilizo a manobra de emergência, por toque ou mais conhecida por estacionamento por ouvido (se dá para estacionar, também dá para desestacionar) – é como a música que se toca por ouvido, não sabemos o que é uma colcheia ou uma semifusa, mas tocamos pífaro por imitação do que se ouve – acelero um pouquinho em marcha atrás até ouvir bater, 1ª, chego à frente, de novo marcha atrás  e bate, 1ª, marcha atrás, bate…

          Arranco, lá vou eu, continuo a conduzir a olhar só para a frente. Na primeira rotunda, sinto o piso escorregadio e faço um peão, Eh lá! Ia fazendo merda!

          Na segunda rotunda faço outro peão, uma curva, contracurva e bato contra um muro.

          Rais parta o frio fdp, que só faz gelo! Grande estoiro!

          As várias camadas de roupa, felizmente,  funcionaram como airbag. Enquanto espero pelo reboque, faço uma listagem mental das pragas contra o frio lindo e maravilhoso, e todos os impropérios que aprendi na escola, no liceu, na faculdade e nos andaimes das obras onde trabalhei.

          Caspité! 30 mil comboios de p--as! 

2 comentários:

Carlos Té disse...

Querida Anita, continuo a rir com o ice tea!!!!!

R, Figueiredo disse...

Olã Ana
Aguardo uma publicação em livro sõ sobre a Anita. Acho que perdi alguns momentos e já mereciamos um livro. Pensa nisso. Beijinho