30 setembro, 2020

LISTEN


Género: Drama

Título Original: Listen

Realizador: Ana Rocha

Actores: Lúcia Moniz, Sophia Myles, Ruben Garcia

Ano: 2020

Sinopse:

Nos subúrbios de Londres, Bela e Jota enfrentam sérias dificuldades quando os Serviços Sociais levantam suspeitas sobre a segurança dos seus três filhos. A surdez da filha de 7 anos desencadeia um processo no sistema que parece não ter fim. Tudo se complica com o passar do tempo. "Listen" retrata a desgastante luta pela união da família após um erro irreversível.

 

OBRIGADA

 


Obrigada

            Há 30 anos, quando decidi viver em Vila Real, os meus amigos perguntaram-me:

            — Que encantos tem Vila Real, para ires viver para a parvónia?

            Expliquei sobre uma cidade pequena com tradição, com história, o regresso às minhas origens visigóticas e talvez pagãs, as vantagens de viver numa cidade pequena, com pessoas genuínas que conviviam e negociavam com as pessoas das aldeias próximas, às terças e sextas, dias de mercado, e todos os dias na praça de S. Pedro. Expliquei-lhes sobre o chamamento do telúrico tão bem descrito por Torga, o mar de pedras, de economizar tempo em transportes, viver a 5 minutos do meu local de trabalho… expliquei-lhes sobre o cabrito no forno, os doces conventuais, sobre os canastros e as cascatas do Alvão. Finalmente arrumava com eles falando sobre Panóias, Nasoni e uma obra de Nadir Afonso, que admirava todos os dias e me fazia viajar no tempo até Corbusier, Óscar Niemeyer e o meu conterrâneo, Vasco Vieira da Costa.

            Após os meus argumentos, eles diziam:

            — Quando podemos ir aí passar o fim-de-semana?

            Agora perguntam-me, porque continuas aí?

            — Não sei até quando… a história não se apaga, as minhas origens continuam, a cidade continua pequena, eu não mudei de casa mas agora posso demorar 30 ou 40 minutos para regressar do trabalho pois a organização do trânsito piorou, pago estacionamento em qualquer sitio do centro, deixei de ter visitas porque não têm onde estacionar o carro, estou a perder qualidade de vida, tenho um grande Lidl e não estou feliz, já não me lembro de Nadir, só penso em promoções de cuecas, grelhadores e couve roxa. As pessoas do campo já não se encontram com as da cidade, agora, sem distinção, passam os fins-de-semana no shopping. Como menos cabrito e mais hambúrgueres.

            Após os meus desabafos, eles dizem-me:

            — Vem até aqui, pelo menos vês o mar.

            Hoje ao final da tarde, entrei no Jardim da Carreira, cumprimentei Laura Afonso, reforçamos a nossa cumplicidade, falei pela primeira vez com uma professora da Utad e ao fim de meia hora, ela lamentava-se de ter trocado o Porto por Vila Real, apresentando as suas decepções sobre a pequena elite que gere, e mal, a cultura em Vila Real, ouvi, concordando e discordando, consoante os casos. Fiquei a pensar no desânimo de alguém que já gostou muito desta cidade e actualmente pretende sair daqui, rapidamente.

            Seguiu-se a apresentação do filme de José Paulo Santos sobre a panificadora demolida.

            Fui a primeira a chamar à razão os cidadãos da Bila, para este caso do seu património, depois ganhei distanciamento à causa, faltando-me resiliência às questões políticas e às estratégias pouco transparentes utilizadas, que já adivinhava que terminariam mal. Hoje também me afastei um pouco, permanecendo no local, de forma discreta, porque me emociona esta causa perdida, por lamentar que os cidadãos e os responsáveis políticos não respeitem a cultura e o património de todos. Opor a um ícone da arquitectura portuguesa, que nos leva aos gigantes da arquitectura do século XX, um supermercado cheio de bróculos, papel higiénico e farelos de aveia, deixa-me desconfortável e preocupada. Acho tudo isto incrivelmente pequenino. Nem um painel de azulejos de Nadir apagará esta vergonha, pelo contrário, é uma solução tão ridícula que acentua a vergonha. Prefiro o vazio.

            Parabéns Zé Paulo, fica o registo cinematográfico da nossa memória.  Obrigada. 

Publicado em NVR,  39/09/2020

  


23 setembro, 2020

CARTA A MARIA

 


Carta para Maria

          “Maria” migrou para Lisboa, procurando vida melhor. Trás-os-Montes sempre teve terra pouco generosa, obrigando os seus, a partirem para outras paragens, onde existiam mais oportunidades. Sempre foi assim, primeiro foi o Brasil, depois África e os Estados Unidos da América, e mais recentemente a Suíça, Alemanha e França, foram o destino da emigração. A migração escolheu Lisboa, cidade grande com alguma indústria e serviços, capazes de acolher alguns transmontanos, especialmente as criadas de servir. Abalavam quase que com a roupa que tinham no corpo, expondo-se a uma família que por vezes as espancavam ou desrespeitavam. Ir servir, era uma faca de dois gumes. Algumas nunca mais voltavam à terra. Com esta estória não pretendo salientar o lado sombrio, mas sim, o lado irónico que contém.    

         Saídas corajosas, que deixavam muitas saudades nos familiares, na época que só havia o correio e o telefone custava caro.

         Então, Maria e a sua mãe iam trocando cartas, daquelas que começavam sempre da mesma maneira:

         Querida filha, espero que esta te encontre bem de saúde, nós por cá, estamos bem, graças a Deus. Por aqui tem estado muito frio. E por aí?

         … terminando,

         Agasalha-te para não adoeceres, e porta-te com a educação que te demos. Cumprimentos da vizinha, um abraço da tua avó e muitos beijos dos teus humildes pais que te adoram.

         No meio da carta seguiam as poucas novidades da aldeia,

         … quem veio no dia da feira, o que disse o padre na missa, se já nasceu o nabal, se a pita amarela tem posto ovos, comunicar alguma escaramuça ocorrida na aldeia, quem casou, quem se supõe namorar, quem já matou o porco, quando nevou, quem anda na doutrina, se já nasceu o menino da Conceição,… O sr. Joaquim está muito doente. A vaca amarela, já pariu…

         Não tinham rádio, nem televisão, não havia conversa sobre nada disso. Só as rotinas contavam.

         A mãe de “Maria” tinha sorte, ao contrário do seu companheiro, aprendeu a ler e a escrever quando era pequena, na escola. Não tinha que ir ao Vieira, pedir para lhe lerem o correio. Lia e escrevia juntando as letras, soletrando, porque não tinha prática, mas dava para se desenrascar. Demorava algum tempo a escrever, tentando uma letra redonda, uma após outra, que a enxada e a gadanha, não lhe ajudavam a apurar. Sentava-se na única mesa que tinha, na cozinha, à luz da candeia, e alinhava algumas palavras sobre o papel fino que lhe tinham arranjado na mercearia, com esforço e dedicação para a sua menina que tinha ido para Lisboa, servir, apenas com 13 anos,

         Um dia escreveu assim numa letra escangalhada, engelhada e sofrida:

         “Querida filha, só para te dizer que estamos bem, graças a Deus. Escrevo-te poucas linhas e desculpa os erros, porque tenho andado mal dos dentes, tirei três e não posso dizer bem as palavras. Mal posso abrir a boca.”

 

“Histórias no Maçadoiro” de Anabela Quelhas

Publicado em NVR, 23/09/2020

09 setembro, 2020

CIDADANIA E A ESCOLA

A Cidadania e a Escola   


            A Escola actual é um sítio de Ensino e Educação.

            Confesso que entendo que a Educação deve ser um processo desenvolvido em família, desde que as crianças nascem, e que a nobre missão da escola é ensinar. O mundo do conhecimento é inesgotável e de facto poderia ocupar toda a carga lectiva e não chegaria.

            Poderemos separar Ensino de Educação?

            Os pais depositam os seus filhos na escola e a maioria demite-se da sua função educadora, por falta de tempo, paciência e conhecimento. Em casa é para jantar e dormir, o resto do tempo, as crianças e jovens estão na escola, e esta vê-se obrigada a educar. Atendendo a este enquadramento, considero que talvez seja a área académica mais importante, tendo como objectivo criar uma sociedade melhor, com cidadãos activos, intervenientes, criativos, críticos e com respeito pelo outro, que pode existir como “disciplina” autónoma ou sendo explorada transversalmente por todos os professores.

            Deve-se esclarecer previamente:

            -- A Religião Moral é uma disciplina facultativa (vivemos num estado laico).

            — Antes havia uma área disciplinar, Formação Cívica, que passou no tempo do Ministro Crato a ter um programa mais focado e estruturado e denomina-se Educação para a Cidadania e Desenvolvimento, e é obrigatória, já que cidadania é algo que todos devemos desenvolver se queremos viver numa sociedade.

            — Quem determina os programas das disciplinas é o ministério da educação e não os professores.

             O caso dos alunos que reprovaram por não terem frequentado Educação para a Cidadania e Desenvolvimento, trouxe a público esta polémica de se ser “objector de consciência” sobre conteúdos leccionados na Escola e cresce uma onda de indignação incompreensível, que tem um odor retrógrado e mal enquadrado. Nas redes sociais passam também um velho questionário, que supostamente teria sido aplicado numa escola e que nunca se provou ser verdadeiro, para arrebatar indignação das massas.

            “A educação para a cidadania visa contribuir para a formação de pessoas responsáveis, autónomas, solidárias, que conhecem e exercem os seus direitos e deveres em diálogo e no respeito pelos outros, com espírito democrático, pluralista, crítico e criativo, tendo como referência os valores dos direitos humanos.”(Direcção Geral da Educação)

            Isto choca alguém?

            As suas áreas temáticas são: Dimensão europeia da educação –Educação ambiental – Educação do consumidor –Educação financeira – Educação intercultural – Educação para a segurança e defesa da paz – Educação para o risco –Educação para o desenvolvimento – Educação para o empreendedorismo – Educação para o voluntariado –Educação para os direitos humanos – Educação para os media – Educação rodoviária – Educação para a saúde para a sexualidade – Educação para a igualdade do género.

            Das quinze áreas temáticas que cada escola poderá seleccionar e desenvolver, o que, na verdade, incomoda o tal grupo de cidadãos que fizeram um abaixo-assinado é Educação para a saúde para a sexualidade e Educação para a igualdade do género. São estas duas áreas que estão na base de toda esta polémica, como se fosse possível separar a Escola da Sociedade, como se as crianças fossem assexuadas, como se elas vivessem numa bolha asséptica. Lembro que os tais cidadãos são mais ou menos os mesmos que defendiam a educação sexual nas escolas, no grande debate sobre a interrupção voluntária da gravidez.

            Cada pai gostaria de ter uma escola à medida das suas ambições e se possível interferindo em continuidade segundo as suas conveniências. Isto não é possível, nem saudável, a Escola não pode andar ao sabor das opiniões e preconceitos dos pais:

            — A geografia não poderia ensinar que a terra é redonda;

            — A história não poderia ensinar sobre escravatura, fascismo e o holocausto.

            — A filosofia e as artes, não poderiam abordar o multiculturalismo e observar o Homem Vitruviano.

            — As ciências não poderiam apresentar Darwin.

            Há uns anos, alguém reclamou por uma escola fazer uma exposição sobre o 25 de Abril, onde figuravam duas fotos sobre a guerra colonial. O que, na verdade, incomodava os pais, não eram as fotos de corpos decepados, que os filhos vêm na televisão depois da meia-noite e nos jogos virtuais, o que incomodava era a escola lembrar o 25 de Abril.

Publicado NVR em 8/09/2020